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As religiões Afro-brasileiras e os direitos reprodutivos da mulher

As religiões Afro-brasileiras e os direitos reprodutivos da mulher

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Inicialmente, é motivo de alegria discutir um tema tão importante, o qual por tanto tempo ficou renegado, dominado e silenciado. De algumas décadas para cá, as religiões têm se pronunciado mais abertamente sobre uma questão que influencia a vida de milhões de mulheres e famílias, no Brasil e fora dele: os direitos reprodutivos das mulheres. O posicionamento público das instituições religiosas é muito relevante em um mundo cujas pautas em torno das “minorias”1O termo minorias é utilizado como destaque para a condição excludente em que são colocados determinados grupos, mesmo sendo em maior quantidade numérica (portanto, maiorias), tais como as mulheres, pessoas negras, e de outras identidades de gênero. têm se tornado – felizmente – uma luta de grande parte da população. Os movimentos sociais foram vitais na visibilização dessas pautas e, o universo acadêmico também contribuiu com novas abordagens, tais como as teorias do Sul, a decolonialidade e sociologia das ausências (Dussel, 2016, Santos, 2010, Quijano, 2005).  Todas elas buscam refletir sobre os sistemas de representação e opressão criados a partir da epistemologia ocidental considerada, até então, a única e válida. Essa construção epistêmica engendrou por séculos uma lógica excludente, a qual todas as demais sociedades e grupos foram subordinados e/ou propositalmente silenciados. As novas abordagens teóricas questionam, criticam e refletem sobre as consequências desse processo, apresentando novos ângulos de percepção da realidade, calcados na valorização das identidades plurais e na visibilidade política, cultural e econômica dos grupos marginalizados.

Nesse cenário encontra-se o grupo das mulheres e pensar sobre ele é notadamente abordar temas que giram em torno dos corpos, da sexualidade e do empoderamento. Falar sobre o corpo e a sexualidade é ainda hoje um tabu e essa condição ocorreu de forma historicamente construída, silenciando essas temáticas em nome da normatização dos corpos e das formas de estar no mundo. Quando se controlam discursos, controlam-se corpos. Assim foi por muito tempo com as mulheres. Não permitir que se falasse sobre si, que não tivessem conhecimento sobre quem são, o que podem ou não fazer, foi também uma estratégia de dominação e domesticação de seus corpos, em sociedades regidas pelo patriarcalismo e machismo. Essa dominação do saber, conforme elucidado por Foucault, faz com que não apenas se digam não às mulheres, mas igualmente, quando se permite falar sobre sexualidade, há sempre alguém que propõe uma “verdade” sobre o assunto (Schienbinger, 2001). Ou seja, até mesmo falar – que seria um caminho contra a repressão dos corpos – seria uma forma de estabelecimento do poder (Foucault, 1984). Se levarmos em conta o fato de que a produção de conteúdo científico, leis e dispositivos jurídicos e estatutos médicos nas sociedades modernas foram majoritariamente elaboradas por homens, é nítido que as mulheres sofreriam as consequências dessa dominação do saber masculino.

Hoje, já podemos ouvir, falar e discutir mais abertamente sobre as questões sexuais e de identidade de gênero, mas o caminho ainda é longo. Essa trajetória “em libertação”2Gosto de denominar uma trajetória “em libertação e não “De libertação, uma vez que a primeira implica em um processo em andamento, ao passo que a segunda expressão demonstra conclusão. Por mais que tenhamos avançado, sabemos que há um longo percurso pela libertação e igualdade de gênero. foi iniciada com os movimentos feministas na Europa, América do Norte e ampliado para outras partes do mundo. Tomemos como exemplo o surgimento da pílula. Esse seja talvez um dos fatos mais marcantes para a trajetória “em libertação” feminina. A pílula permitiu que as mulheres olhassem seus corpos e decidissem o que fariam com eles. A possibilidade de decisão – até então inexistente – foi fundamental. Faz-se necessário, porém, que essa discussão tenha um recorte sócio-econômico. Não podemos dizer que todas as mulheres conheçam a pílula, recorram à atendimento médico para avaliar possibilidades e efeitos e mesmo que possuam poder de compra. A tomada de decisão requer, também, condições financeiras e informativas, algo que muitas mulheres brasileiras não possuem.

O aborto é outro assunto diretamente relacionado ao corpo feminino e que tem sido tratado em termos de moralidade na maior parte dos países e não como um tema de saúde pública. No Brasil, o aborto é ilegal, mas praticado amplamente. Mulheres de classe média e alta recorrem a clínicas amparadas, ao passo que às mulheres de classes baixas restam clínicas clandestinas, sem higienização, ausência de materiais apropriados, às vezes, até mesmo sem profissionais formados na área médica.

E como as religiões afro-brasileiras veem essa discussão? A primeira resposta é: não é possível pensar o campo religioso afro-brasileiro de forma homogênea, de modo que não há um pensamento único sobre os direitos reprodutivos da mulher. Não é viável abordar as religiões afro-brasileiras sem falar sobre o conceito de pluralidade, porque ele não é uma condição a posteriori desse universo, mas antes, constitui sua natureza, formada de matrizes étnicas, culturais e regionais completamente diversas. O campo religioso afro-brasileiro só existe porque foi formado não por uma, mas por várias tradições completamente diferentes em termos culturais, geográficos, linguísticos e religiosos. As religiões afro-brasileiras nasceram em solo brasileiro do encontro das tradições cristãs católicas e espíritas, das tradições africanas a partir da diáspora nos fluxos escravagistas (contribuições religiosas das etnias jeje, fon, nagô, angola, haussá) e das tradições ameríndias (a pajelança indígena). Desse caldeamento historicamente constituído, as religiões afro-brasileiras se formaram, refletindo em cada região do país os elementos que mais prevaleciam das tradições citadas acima.

A natureza plural da formação dos cultos afro-brasileiros e, posteriormente, denominados de religiões afro-brasileiras (Carneiro, 2014) permitiu que simpatizantes espalhados por diversas regiões do país experimentassem vivências religiosas completamente distintas. A despeito da distância epistemólogica entre as práticas, no entanto, todas elas podem ser enquadradas metodologicamente como religiões de matrizes africanas e ameríndias, e como tais apresentam características que compõem a estrutura desse universo.

No que se refere ao campo dos valores, as religiões afro-brasileiras são bem distintas. Camargo (1961) já na segunda metade do século XX analisou que a religiosidade afro-brasilera organizava-se em um continuum religioso que ia de um polo africano (negro) ao seu oposto, o polo europeu (branco). Não se trata de uma análise racialista das religiões afro-brasileiras, mas de entender que na cosmovisão mais diretamente africana, onde se encontram o candomblé ketu, angola, jeje, por exemplo, a visão sobre o corpo, sexualidade, sobre as relações de gêneros são muito mais progressistas e libertárias. De modo oposto, a cosmovisão religiosa mais europeizada, onde se encontram a umbanda branca e espiritismo de umbanda, tende a ser mais conservadora em seus valores, uma vez que interpreta e vivencia a religiosidade afro-brasileira à luz de valores cristãos presentes na bíblia e nos livros kardecistas.

Nesse sentido, é possível verificar que o candomblé, a pajelança indígena, o toré, o xambá, o batuque do sul, os xangôs do nordeste tendem a ser muito mais libertários, entendendo que a mulher deve decidir pelo seu corpo, deve ser informada desde à infância pela família, pela escola e até mesmo nos terreiros, com conversas e orientações. O corpo nesse universo afro-brasileiro é visto como sagrado. Nele está contida a noção de saúde e doença, de vida e morte. Há uma série de narrativas míticas dos orixás que explicam sobre liberdade, sobre autonomia, sobre responsabilidade, sobre autocuidado e empoderamento feminino. Portanto, as temáticas sociais que circundam o universo feminino são debatidas relevando o que é ser mulher praticante desse universo religioso e fazendo igualmente um recorte interseccional entre raça, gênero e condição social.

Já as religiões afro-brasileiras de influências cristãs tendem a seguir um estilo mais moralista, onde discursos sobre irresponsabilidade, bem como a tentativa de “brincar de Deus” ao optar pelo aborto são muito defendidos. As escolhas das mulheres ficam, portanto, subordinadas à uma lógica mais conservadora, a qual mantém valores de família nuclear e muitas vezes culpabilizando a mulher pelos seus atos, ao invés de acolhê-la e orientá-la.

Cabe ressaltar que a perspectiva mais africana ou mais cristã de vivenciar as religiões afro-brasileiras não são deterministas: ou apoiando ou negando os direitos reprodutivos da mulher. A realidade é muito mais complexa e reduzir o debate em uma perspectiva dicotômica pode ser perigoso. As representações sobre a mulher, sobre a religião, as divindades e até mesmo sobre os pais e mães de santo influenciam muito como um terreiro se posiciona em relação a esse tema. Assim, é preciso compreender cada grupo religioso, seu processo de formação, seu histórico para oferecer uma abordagem mais realista. De todo modo, dentro do quadro religioso brasileiro, as religiões afro-ameríndias-brasileiras são vistas como mais livres, mais abertas, mais acolhedoras. Não há um livro sagrado que oriente e enrijeça os fundamentos religiosos, nem uma figura ou órgão centralizador dos conhecimentos. Essa característica faz das religiões afro-brasileiras descentralizadas e plurirreferenciais. Por fim, cabe ressaltar cada vez mais há a preocupação das lideranças religiosas em encarar esse debate. Elas têm disseminado a ideia de que a vivência religiosa é uma prática diária para além das festividades e rituais, entendida como uma forma de ser e estar no mundo, lutando por valores mais justos e humanitários.


Referências

CAMARGO, Cândido Procópio. Kardecismo e Umbanda: uma interpretação sociológica. São Paulo: Pioneira, 1961.

CARNEIRO, João Luiz. Religiões Afro-brasileiras. Uma construção teológica. Petrópolis: Vozes, 2014.

 VEJA TAMBÉM
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DUSSEL, Enrique. Transmodernidade e interculturalidade: interpretação a partir da filosofia da libertação. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, jan./abr. 2016.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora Cortez. 2010.

SCHIENBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? Bauru: EDUSC, 2001.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

Notas

  • 1
    O termo minorias é utilizado como destaque para a condição excludente em que são colocados determinados grupos, mesmo sendo em maior quantidade numérica (portanto, maiorias), tais como as mulheres, pessoas negras, e de outras identidades de gênero.
  • 2
    Gosto de denominar uma trajetória “em libertação e não “De libertação, uma vez que a primeira implica em um processo em andamento, ao passo que a segunda expressão demonstra conclusão. Por mais que tenhamos avançado, sabemos que há um longo percurso pela libertação e igualdade de gênero.