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Descobrir as Deusas para aproximar-se do mistério do divino feminino e reencontrar a identidade e o papel da mulher na sociedade de hoje

Descobrir as Deusas para aproximar-se do mistério do divino feminino e reencontrar a identidade e o papel da mulher na sociedade de hoje

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“O eterno feminino nos impulsiona para o alto” (Goetche, Fausto)

Quando a nova espiritualidade das mulheres começou a ganhar vozes nos anos 70 do século vinte (1970), uma das primeiras reclamações que escutamos foi o dos muitos rostos que nos foram arrebatados. Para algumas mulheres alguma coisa não andava bem em um esquema cultural onde somente 3 ou 4 tipos de mulher eram permitidos e aceitos: A MULHER MÃE, ESPOSA, FILHA OU A AMANTE DO HOMEM. Não era possível que todas as outras urgências que apareciam, tanto a partir do feminismo, como da ansiedade mundial da libertação feminina fossem só moda, caprichos novos, vindos de senhoras cansadas de tentativas de imitar os homens para sair da ociosidade e da insatisfação; ou quem sabe, impulsos justiceiros por reformas sociais para que chegassem a disfrutar dos mesmos direitos dos homens? Ou haveria algo mais que ia além de todas essas coisas. Uma experiência mais profunda e transcendente. Tudo indicava que havia uma tarefa a completar.

Neste caso os quatro esteriótipos femininos, ligados aos interesses do homem varão, não eram o bastante.

Havia que colocar o pensamento mais acima, olhar do alto o panorama de uma humanidade instalada na guerra e na destruição dos seres vivos. Era necessário pensar para frente, no futuro dos filhos dos filhos que habitariam esse planeta maltratado. Era preciso descobrir as diversas atitudes femininas que vão além dos clichês da docilidade, da doçura, da obediência e de uma suposta igualdade com o homem. Que fazer, então?

As deusas foram a resposta.

Uma resposta que vinha de longe e que o inconformismo feminino desenterrava agora com urgência, na segunda metade do século XX, para poder contar com descrições, atributos e atitudes femininas que alguma vez haviam sido sagradas e legítimas. Era necessário redescobrir os velhos rostos femininos que em outros tempos haviam sido venerados. E, nesse esforço, recuperamos modelos das mulheres como sábias, valentes e criativas, nos níveis mais altos, curandeiras e médicas, construtoras e arquitetas, inventoras da linguagem escrita, e muito mais. As antigas imagens das deusas permitiram reconstruir conceitos básicos do princípio feminino universal, o que, sem conhecê-las, haveria sido impossível. Não era preciso inventar nada. Tudo estava alí.

Joseph Campbell, grande mitólogo americano, entre 1972 e 1986, pronunciou mais de vinte conferências sobre as deusas. Explorava as figuras, funções, símbolos e temas do Divino feminino. Fala do aparecimento de uma grande Deusa, em muitas deusas da imaginação mítica. Um de seus temas preferidos é a transformação e a resistência dos poderes simbólicos, arquétipos do divino feminino, apesar dos dois mil anos de tradições religiosas patriarcais e monoteístas que tentaram excluí-los. Para ele são temas relacionados com as deusas:

– a iniciação nos mistérios da imanência experimentada através do tempo e do espaço e o eterno;

– a transformação de vida e morte;

– a consciência energética que informa e anima toda forma de vida.

Inspirou-se na obra de Marija Gimbutas sobre a Grande Deusa do mundo neolítico da Velha Europa. (7.500-3.500 a.C). Reafirmou, ainda mais, sua primeira intuição: a Grande Deusa constituía a figura divina essencial na primeira concepção mitológica do mundo.

O estudo da mitologia da Grande Deusa progrediu significativamente a partir das conferências de Campbell há mais de quatro décadas. Foi sensibilizado pela natureza única da forma feminina na mitologia e o que isto poderia significar para as mulheres. Entendeu e respeitou a importância vital do espírito feminino e seu potencial para transmitir o significado das experiências femininas de maneira mítica e criativa. Soube ver isto como um dom e um desafio para nossa era e respeitou o papel das mulheres. Para ele, muitas dificuldades que atualmente as mulheres enfrentam vêm do fato de que estão entrando em um campo de ação que, antigamente, estava reservado aos homens e para o qual não existem modelos mitológicos femininos.

Assim, a mulher possui uma identidade própria e, tradicionalmente, (há 4 milhões de anos) sua relação com o masculino não foi apresentada como uma competição direta, mas como uma cooperação e apoio mútuo, na experiência partilhada da vida. Seu papel biológico era o de dar à luz e criar filhos. O papel masculino era o de apoiar e proteger. Ambos os papéis são biológicos e, psicologicamente arquétipos.

A mulher se encontra em uma relação competitiva com o homem, e isso pode fazê-la perder o sentido de sua própria natureza. Mas o que aconteceu agora é que, em certa medida, as mulheres se libertaram de sua tradicional escravidão no lar. Estão entrando no território da busca individual, das conquistas e da auto realização para o que não existem modelos femininos. De outro lado, ao desenvolver suas respectivas carreiras, as mulheres emergem, progressivamente, como personalidades diferenciadas, deixando para trás o velho acento arquetípico do papel biológico – embora estejam, ainda, condicionadas a este papel.

Em nossa mitologia, afirma campbell, não existem modelos para a busca individual de uma mulher. Não existem modelos para nada do que está acontecendo. Tudo mudou e o momento é de queda livre no futuro e cada um/a deve enfrenta-lo à sua maneira. Os velhos modelos já não funcionam e os novos ainda não apareceram. Somos nós mesmos/as que estamos dando forma ao novo, enquanto modelamos nossas vidas. Em termos mitológicos, o sentido do desafio é este: somos os/as antepassados/as de uma era que está por chegar, os geradores involuntários dos mitos em que se sustentará essa nova era, os modelos míticos que inspirarão as vidas vindouras. Num sentido muito real, portanto, o momento atual é um momento de criação. Como diz o novo testamento “ninguém põe vinho novo em odres velhos e o vinho novo pode fazer explodir os odres velhos (Mc 2,22). Vamos, então nos converter em precursores/as dos odres novos para um novo e embriagador vinho que já estamos começando a provar.

Descobrir e aprofundar o conhecimento sobre as deusas é para nós, mulheres e homens, um grande desafio. Trata-se de um tema desconhecido e envolto, ainda, em muitos preconceitos. Para alguns, um risco de negar a fé em um Deus que sempre nos foi apresentado como único, masculino, e, por isso, legitimador da dominação masculina e do poder do homem sobre a mulher. “Se Deus é masculino, o masculino é Deus”

Cabe a nós, nos perguntar pelas formas em que apareceu, desde os primórdios da humanidade, a figura da Deusa Mãe Criadora, Divindade feminina, respeitada, admirada, cultuada, por sua capacidade de criar, transmitir e cuidar da vida como ninguém. Foi a partir da revelação desses mesmos poderes que as mulheres, no início, seres misteriosos e respeitados, que se chegou à conclusão a respeito de uma Divindade feminina da qual essas mulheres, tão poderosas e portadoras do grande mistério de gerar e cuidar da vida, deviam ser a imagem e semelhança.

Aqui, não se trata de Teologia. Estamos falando em Mitologia – Arqueologia – Antropologia.

Trata-se de tentar descobrir como apareceu o culto às deusas nas origens da humanidade, de uma aproximação do mistério do divino feminino para descobrir nosso papel de mulheres na sociedade. Meu texto de referência foi: Diosas, misterios de lo divino feminino, escrito em inglês por Joseph Campbel[1]

Neste livro ele esclarece qual o verdadeiro sentido de MITO: história sagrada para os povos primitivos. Explica como as coisas vieram a existir e porque são como são. Não é lenda, fantasia, mentira. O mito é inquestionável. Não precisa ser explicado. É por isso que podemos dizer que na história de todos os povos existem mitos originários, cheios de sentido e de sabedoria. Um deles é o Mito da Criação que abre a Bíblia hebraica e que tem muito do mito babilônico venerado pelos povos da mesma região onde nasceram as histórias bíblicas.

 VEJA TAMBÉM
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A descoberta das deusas tem a ver com uma ciência relativamente nova, a ARQUEOLOGIA que é um termo que vem dos gregos e significa: estudo do passado. Portanto, a arqueologia é a ciência social que estuda o passado das civilizações humanas por meio de escavações que revelam os vestígios materiais deixados por elas.

Esses vestígios se encontram em sítios arqueológicos, em objetos como armas, decorações, ferramentas e utensílios de cozinha, em pinturas e inscrições em pedras e em outras marcas de ocupação. A partir da análise desses objetos, o arqueólogo traça a história de evolução da sociedade. Neste contexto aconteceu a descoberta das deusas, imagens minúsculas talhadas na pedra ou na argila, veneradas e cultuadas pelas antigas civilizações, como companheiras, esposas e até mães dos deuses, geradoras e cuidadoras da vida. Receberam nomes diferentes nos variados contextos onde foram encontradas ou para onde foram transportadas. Vale a pena pesquisar as inúmeras deusas gregas, egípcias, cananeias, inclusive uma famosa:  ASHERÁ cujo nome aparece mais de 40 vezes na bíblia hebraica, considerada companheira e até mesmo esposa de YAVEH.

Então, como se explica que nos foi transmitido um Deus único, masculino, apagando da história a existência Deusa Mãe Criadora, referência para as mulheres, como Divindade feminina que não anula nossa fé em YAVEH, mas faz justiça a Ele mesmo e à humanidade cuja metade é feminina e precisa encontrar uma referência que revele mais profundamente a identidade das mulheres? Aqui fica um convite-desafio para quem se interessa pelo tema afirmando que um mundo novo se abrirá para descobertas importantes tais como: o surgimento das deusas, seu desaparecimento por influência do patriarcado e seu reaparecimento a partir de estudos mais recentes. Outro livros, citados abaixo, muito ajudarão nessa descoberta.[2]


NOTAS 

[1] CAMPBELL, Joseph: Diosas, mistério do Divino feminino. Tradução para o espanhol de Cristina Serna. Ediciones Atalanta, S.L.Girona, Espanha.

ROMÁN, Sandra: Diosas en tu vida cotidiana. Ed revisada. Rosario, Argentina, Mito Ediciones. 2018.

CARBÓ, Guillermo. ASERÁ, indícios del culto a una diosa en el Israel bíblico. Ed. San Pablo, Buenos Aires. Argentina.

[2] ROMÁN, Sandra: Diosas en tu vida cotidiana. Ed revisada. Rosario, Argentina, Mito Ediciones. 2018. CARBÓ, Guillermo. ASERÁ, indícios del culto a una diosa en el Israel bíblico. Ed. San Pablo, Buenos  Aires. Argentina.