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Somos todos abusadores – Homens, gênero e abuso

Somos todos abusadores – Homens, gênero e abuso

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Talvez seja importante iniciar essa reflexão afirmando que o gênero (masculino) da palavra “abusadores” não é acidental ou tem pretensão de universalidade (como se a forma masculina se referisse a todas as pessoas). Para quem está mais atenta ou atento e é treinada ou treinado no uso de linguagem inclusiva de gênero isso parecerá evidente. Mas, infelizmente, para a maioria não. Por isso, repito de forma mais enfática e direta: todos os homens são abusadores.

Aqui não se trata de uma afirmação de um suposto “feminismo radical” ou de um simples “ódio aos homens” – sendo eu mesmo um deles – como algo geralmente considerado superficial e irrefletido. Pelo contrário, o que proponho é justamente pensar sobre o abuso como expressão das assimetrias de gênero abundantemente pesquisado e evidenciado pelos estudos feministas e de gênero.1Não entrarei aqui na definição do que é abuso ou o diferenciarei de outras formas de violência baseada em gênero. Há diversos manuais teóricos, pedagógicos e jurídicos que tratam desse tema. Nisso se inclui tanto as formas consideradas mais graves (como se efetivamente fosse possível escalonar formas de violência na forma como elas atingem quem as sofre), quanto o complexo sistema de significação e organização das identidades, expressões e relações de gênero, sendo esse último o que mais me interessa aqui.

Como, apesar de todas as campanhas e tentativas de inviabilizar, silenciar e até demonizar as discussões sobre gênero, há uma maior percepção sobre como essas questões impactam no cotidiano das relações, isso também se reflete num maior questionamento aberto e denúncias públicas sobre as diversas formas de violência de gênero, incluindo questões de abuso. Embora seja um tema complexo em vários sentidos e haja vasta literatura e materiais didáticos e informativos sobre ele, há, ainda, uma certa ignorância (proposital) por parte da maioria dos homens, particularmente quando questionamentos e denúncias se dirigem a eles individualmente. De modo geral, as reações a qualquer sugestão ou denúncia de que um homem tenha praticado abuso contra uma mulher evidenciam precisamente isso – ignorância (proposital).

Pronunciamentos de homens em relação a acusações de abuso formalizadas e consubstanciadas com evidências e provas robustas e definitivas evidenciam, mesmo quando, em alguns casos, admitem “exageros”, que tais homens não entendem suas ações e atitudes como “abuso” e acreditam estarem sendo vítimas de algum tipo de perseguição. Afirmações como “não foi a intenção”, “ela não entendeu corretamente”, “eu achei que estava agradando” fazem parte do repertório de quem admite que “até” pode ter sido entendido dessa forma (como abuso), mas que a reação não necessariamente se justifica. Obviamente, posicionamentos mais comuns e contundentes são aqueles bem conhecidos que questionam o comportamento, a capacidade de entender o que de fato ocorreu e o próprio sentimento das mulheres em relação à situação entendida (por elas) como abuso. Não só o fato é diminuído em si, como as próprias mulheres são caracterizadas como “exageradas”, “incompetentes” e “loucas”. Nesses casos, há uma crescente responsabilização dos homens abusadores e empatia com as mulheres vitimadas pelo abuso.

Em situações nas quais o abuso não pode facilmente ser comprovado, seja pela ausência de evidências materiais mais explícitas ou pela sutiliza com que acontece, a questão fica mais complicada. Geralmente envolvendo homens não considerados pelo seu entorno como “machistas contumazes” e mulheres consideradas “sensíveis demais”, tais casos de abuso tendem a diminuir a importância dos atos e suas percepções em si, culpabilizar mulheres de diversas formas (veladas ou diretas) e, muitas vezes, colocar os homens na posição de vítimas. A vitimização se dá pela assunção de que se trata de “um homem de bem” (e até aliado das mulheres) ou pela afirmação de que se trata de algum tipo de perseguição com motivações questionáveis. Casos recentes de grande repercussão com figuras públicas evidenciam essa “vitimização” de homens em face de denúncias de supostos abusos. E é preciso que se diga: em denúncias de abuso homens nunca são vítimas.

Não estou (necessariamente) questionando o fato de que haja situações em que alguns homens possam ser acusados de abuso sem que efetivamente o tenham praticado. Meu questionamento se dirige a essa “vitimização”. Em termos discursivos (com repercussões bastante concretas e práticas), a ideia de que um homem é ou pode ser “vítima” numa acusação de abuso por questões de gênero é fundamentalmente problemática. Não porque o ato que é objeto de acusação seja necessariamente “real” ou “verdadeiro” (algo que só pode ser definido a partir de uma análise pormenorizada de cada caso e tendo prevalência – sempre – a palavra de quem se declara vítima do abuso – nunca do suposto abusador), mas porque tal ideia tem repercussões sociais na compreensão e identificação de atos de abuso que impactam na percepção geral sobre o que configura ou não abuso – e sua perpetuação como prática aceitável.

Façamos primeiramente uma leitura reversa: se uma mulher for acusada de não ser competente no seu trabalho, por exemplo, há uma tendência geral em acreditar que essa afirmação seja verdadeira (até que se prove o contrário); se uma pessoa negra for acusada de roubar um produto em uma loja, há uma tendência geral em acreditar que essa afirmação seja verdadeira (até que se prove o contrário); se um homem gay for acusado de assediar um outro homem, há uma tendência geral em se acreditar que essa afirmação seja verdadeira (até que se prove o contrário). Os motivos para isso são simplórios tanto quanto preconceituosos: há um senso comum (construído em longos processos históricos) de que pessoas com determinadas características estão “propensas” a cometer determinados atos justamente pela forma como suas identificações são construídas. As ações de um indivíduo são suficientes para gerar desconfiança e propensão à culpabilidade em relação a qualquer outro indivíduo que tenha características tidas como comuns a ele. Seguindo essa lógica, se a cada 10 minutos uma mulher é estuprada no Brasil2https://g1.globo.com/dia-das-mulheres/noticia/2022/03/07/brasil-teve-um-estupro-a-cada-10-minutos-e-um-feminicidio-a-cada-7-horas-em-2021.ghtml, supor-se-ia que a ideia geral é de que todos os homens são estupradores; o que não é o caso.

Nos casos mencionados, cabe aos próprios indivíduos provar que não são culpados/culpáveis. Nessa árdua e inglória tarefa, no entanto, até mesmo indícios aleatórios e tangenciais passam a figurar como provas contundentes. A acusação já é uma condenação com consequências, no geral, irreversíveis – individualmente, e para a própria coletividade assumida que passa a carregar tal estigma. Por isso, em geral, de saída precisam se esforçar para demonstrar e aparentar que estão “acima de suspeitas”, uma posição tão frágil quanto violenta que pode se desafazer a qualquer insinuação – inconsequente ou de má fé. Todas são, a priori, suspeitas unicamente por serem identificadas como pertencentes a um determinado grupo em função de determinadas características.

O mesmo não acontece com homens, especialmente se forem brancos, cisgênero, heterossexuais, com recursos, como evidencia o exemplo do número de estupros no Brasil. Em realidade, com os homens, ocorre o contrário, particularmente em relação a questões de gênero. Para eles/nós vale o princípio abstrato e universal do “até que se prove o contrário”. Mesmo numa situação em que o ato em si é atribuído fundamentalmente a eles (como no caso do estupro) e as evidências comprovam a veracidade dessa atribuição, facilmente são tratados como “vítimas” de pessoas mal-intencionadas (em geral, não homens) que querem acabar com suas carreiras e sua reputação levianamente, chegando-se, inclusive, a colocar em dúvida a existência de “abuso” de modo geral, como se fosse uma ideia inventada para atacá-los e cercear sua liberdade e espontaneidade. Sim, é perverso.

As condições de possibilidade para que isso aconteça – ainda que quando colocado dessa maneira pode dar a impressão de absurdo para algumas pessoas – é dada pelo que estudos feministas e de gênero têm chamado, entre outros, de patriarcado, e pelo dispositivo de poder que é o eixo articulador da própria invenção do gênero como categoria classificatória dos seres humanos. Talvez aqui a linguagem complique um pouco a compreensão do que está sendo discutido, mas são apenas categorias e modelos teóricos desenvolvidos para ajudar a pensar sobre os exemplos e processos sobre os quais estamos refletindo e ajudar a perceber como funcionam. Dito de outra forma, no mundo e nas sociedades organizadas a partir de diferenças de gênero (a questão é mais complexa, mas para essa reflexão usemos apenas as categorias “homem” e “mulher”), cada pessoa identificada como “homem” participa (e se beneficia) dos atributos e das condições associadas a indivíduos assim identificados. Mesmo que nem toda pessoa identificada como homem tenha esses atributos, ela é vista, identificada e valorizada a partir deles (até que se prove o contrário).

Heleieth Saffiotti fala do patriarcado como uma “máquina”, que funciona mesmo quando o homem/patriarca não está presente. É o caso, por exemplo, quando se diz “você vai ver o que vai acontecer quando o seu pai chegar”. Invoca-se uma autoridade e poder do “pai” que se materializará ou não no futuro para resolver uma questão no presente. E, muitas vezes, o pai nem fica sabendo, mas o sistema continua funcionando. Embora ele possa ser um pai legal e compreensivo, a imagem criada pelo conjunto dos “pais” faz com que a invocação dessa imagem seja eficaz e, mesmo “sem querer”, ele continue vigorando como uma “ameaça” capaz de se cumprir. Então, se no caso das mulheres, o exemplo de uma (veja-se o caso de Eva) é suficiente para gerar suspeita sobre todas as mulheres, por que o exemplo de um homem abusador (a Bíblia – para permanecer nos textos sagrados cristãos – está cheia deles) não é suficiente para responsabilizar todos os homens pela própria existência do abuso? Justamente porque na distribuição e no exercício do poder, alguns têm a possibilidade de definir em quê situações essas generalizações podem ser aplicadas, geralmente em benefício próprio – e aí entramos no campo do privilégio.

Um outro exemplo. Acredito que seja pacífico afirmar que mulheres têm medo de circular sozinhas em espaços públicos (algumas em casa mesmo), especialmente à noite3Segundo dados, 95%: https://www.brasildefato.com.br/2022/03/25/violencia-contra-a-mulher-95-das-mulheres-temem-ser-vitimas-de-estupro-no-brasil-diz-estudo, ou deveriam ter – para sua proteção. Pais e mães, tios e tias, avôs e avós, vizinhos e vizinhas e até pessoas desconhecidas orientam as filhas e meninas em geral a não o fazerem, pois é “perigoso”. O “perigo”, nesse caso, são os homens, ainda que se imagine uma classe especial de homens que nunca são aqueles que utilizam esses argumentos. O objetivo e o resultado é o desenvolvimento de uma sensação de “medo” por parte das mulheres nessas situações (e, por extensão, em outras), o que as previne/impede de circular livremente e limita suas possibilidades. Ou seja, as mulheres são ensinadas a “temer” os homens. No entanto, quando elas expressam esse sentimento em relação aos homens, que se consideram “homens de bem” e incapazes de praticar o mal, muitos se sentem ofendidos e classificam esse mesmo sentimento como “exagero” – ou algo pior. Daí pra se considerar uma “vítima” injustiçada de “mulheres paranoicas” é um pulo.

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A situação toma feições particulares quando envolve a questão da religião. Por um lado há símbolos, mitos, ritos e doutrinas que refletem pedagogias de gênero que ensinam como homens e mulheres devem se comportar dentro ou fora do espaço religioso em função do seu gênero. Por outro lado, as tradições religiosas definem os lugares e as funções que podem/devem ser ocupadas ou mesmo como a fé deve ser vivenciada segundo o gênero. Isso inclui a organização e distribuição das posições de poder e liderança que, não raro, privilegiam homens em relação a mulheres. Nesses casos, as assimetrias podem ser consideradas parte da própria crença e sancionadas em função do que é considerado sagrado, tornado difícil não apenas a identificação e responsabilização de situações de abuso, mas a afirmação de sua própria existência, uma vez que considerado “normal” ou “natural” que tais situações aconteçam e sejam relativizadas em nome da fé. No caso de lideranças, que supostamente representam o sagrado ou encarnam suas melhores qualidades, a prática do abuso pode ser confundida com a própria vontade da divindade e seu questionamento ou denúncia ser vista como ataque à própria crença e sua institucionalidade, especialmente se forem homens.

Até aqui não foi feita, propositalmente, referência a questões legais envolvendo denúncias de assédio. Como dito, não interessa, aqui, discutir tipificações ou formas particulares de abuso e outras formas de violência baseada em gênero. Entende-se que, no caso de acionamento das instituições jurídicas ou outros órgãos de controle e fiscalização, é necessário seguir o rito processual garantindo ampla defesa dos acusados. Não se duvida que haja casos em que as denúncias não se comprovem e que, de fato, não procedam. Isso, no entanto, não deveria ser uma oportunidade para que homens se coloquem na posição de vítimas. Ainda que não sejam culpados/culpáveis em situações específicas de denúncias de abuso, por sua condição de poder e privilégio, nenhum homem pode arrogar-se o lugar de vítima numa situação que envolve a possibilidade de abuso, pois essa possibilidade não só é real, como comum.

Qual o homem que poderá dizer que sua mera presença num espaço com a presença de mulheres, especialmente se ostentar um título (político, acadêmico, religioso), não interfere na forma como se dão as relações e como são tomadas as decisões? Não será ele imputável pelas consequências reais e concretas que provoca na esteira de décadas, séculos e milênios de homens que vieram antes dele e o fizeram partícipe desse sistema? Qual o homem que nunca se encontrou numa situação em que estava sozinho com uma mulher (na rua, numa sala, num templo) poderá desqualificar o medo injustificável que essa mulher poderá ter sentido com sua presença? Não configura isso situações de abuso? Ser um abusador – ou participar da classe de abusadores – não é algo que decorre, necessariamente, de algo que se faz, mas de um sistema do qual participamos e que nos coloca nessa posição.

A maioria dos homens continua ignorando (propositalmente) que o fato de serem identificados como homens lhes garante privilégios e que essa questão básica, por si só, representa um abuso que se materializa concretamente nas relações individuais ou coletivas de diversas formas. Há muitas formas de enfrentar e superar esse estado de coisas que não são objeto dessa reflexão. Uma delas, apontadas aqui, é jamais assumir o lugar de vítima em situações que envolvem abuso, evitando de revitimizar as reais vítimas – envolvidas diretamente ou por associação em contextos patriarcais, machistas, misóginos e sexistas.


Notas

  • 1
    Não entrarei aqui na definição do que é abuso ou o diferenciarei de outras formas de violência baseada em gênero. Há diversos manuais teóricos, pedagógicos e jurídicos que tratam desse tema.
  • 2
    https://g1.globo.com/dia-das-mulheres/noticia/2022/03/07/brasil-teve-um-estupro-a-cada-10-minutos-e-um-feminicidio-a-cada-7-horas-em-2021.ghtml
  • 3
    Segundo dados, 95%: https://www.brasildefato.com.br/2022/03/25/violencia-contra-a-mulher-95-das-mulheres-temem-ser-vitimas-de-estupro-no-brasil-diz-estudo