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OS EVANGÉLICOS E AS ELEIÇÕES DE 2022: UMA ENTREVISTA COM A SOCIÓLOGA CHRISTINA VITAL

OS EVANGÉLICOS E AS ELEIÇÕES DE 2022: UMA ENTREVISTA COM A SOCIÓLOGA CHRISTINA VITAL

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Desde o processo de redemocratização no país a partir da Constituinte de 1988, sobretudo nos últimos pleitos eleitorais, os evangélicos vêm ocupando de maneira crescente – mesmo que de forma complexa e plurifacetada – um lugar como atores de protagonismo na esfera política brasileira. Seja através de um processo estratégico e intencional de apoio institucional a candidaturas religiosas ou não, ou do uso retórico do discurso religioso com apelos à moral cristã conservadora por diversos grupos de interesse, os votos evangélicos mobilizados por estas instâncias passaram a ser percebidos como componentes centrais nas disputas das eleições gerais no país dos anos recentes.

Sobre este tema, a Revista Senso convidou, para uma entrevista virtual, a socióloga brasileira Christina Vital da Cunha. Christina Vital é doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ), com estágio no Centre de Recherche sur le Brèsil Contemporain na École de Hautes Études en Sciences Sociales (Paris); Professora associada do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal Fluminense; Autora do livro “Oração de traficante” (Garamond, 2015) e uma das escritoras do livro “Religião e política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014” (Fundação Heinrich Böll Brasil & Instituto de Estudos da Religião, 2017), além de diversos artigos e palestras com ênfase na antropologia da Religião, política, criminalidade, entre outros.

Para Christina Vital, o perfil e composição do plural eleitorado evangélico necessita ser compreendido para além dos aspectos religiosos restritivos, considerado elementos de classe, gênero e raça. Ademais, é fundamental desvelar as articulações, táticas e movimentos dos diversos partidos e grupos ideológicos em suas investidas para coaptarem à população evangélica, bem como também das próprias lideranças evangélicas, e suas cúpulas, aos interesses religiosos/“mundanos” junto à conquista do poder político através das eleições.

Revista Senso – Como tem sido a participação e o comportamento dos evangélicos nas últimas eleições gerais no Brasil? Os evangélicos votam de forma uniforme?

Christina Vital – Em primeiro lugar não podemos falar em voto evangélico como se ele fosse uma variável que pudesse ser isolada de modo seguro de todas as outras para explicar a dinâmica do voto nas últimas eleições gerais no Brasil. Há somente 37 anos, a democracia foi restituída no país, e, em 2022, teremos a 7ª eleição presidencial depois da redemocratização. Estamos falando de um país de maioria pobre, seja pela baixa renda per capta, seja porque o custo de vida nas cidades precarizam muito as condições de existência da população. No Brasil, 52% dos assalariados recebem até dois salários mínimos. É justamente entre as camadas mais baixas e urbanas que se concentram a maioria dos evangélicos e evangélicas no Brasil. Sendo assim, falar das escolhas desta população não pode levar somente em conta a questão religiosa.

A bibliografia especializada é farta em apresentar o caráter mais conservador de evangélicos em relação a católicos, contudo, somente isso não define o voto em um ou outro candidato. Fatores econômicos, experimentação de violência e ideologias transnacionalmente assimiladas são importantes na equação do voto para as candidaturas majoritárias.

Mas, nas eleições 2022, mais do que em qualquer outro pleito, a linguagem religiosa foi intensamente utilizada como linguagem política na disputa, sobretudo pela candidatura do atual presidente da República, chegando a exaurir pastores e pastoras que veicularam nas redes sociais vídeos de pregações contra a política nos púlpitos. Devemos lembrar que a afirmação de existência de um “voto evangélico” interessa muito a líderes midiáticos, com a finalidade de aumentar seu cacife e proteger a si mesmos e aos seus conglomerados econômicos. Cientistas sociais e pesquisadores sérios não podem vaticinar a existência de um voto evangélico, a menos que complexifiquem muito o uso que está sendo feito por aí desta categoria, como explicativa da opção de um grupo heterogêneo em termos de classe, raça, orientação sexual e ideológica.

 

Revista Senso – Que elementos devemos considerar sobre o eleitorado evangélico para compreender as disputas partidárias neste pleito?

Christina Vital – As pesquisas quantitativas mostram que o eleitorado que principalmente vota em Bolsonaro é masculino e recebe mais de 2 salários mínimos. Entre evangélicos, as mulheres também vêm mostrando maior resistência do que os homens em votar no atual presidente. Novamente, aqui as questões de classe e raça têm muita importância, haja visto que essas mulheres evangélicas moradoras em periferias foram muito afetadas negativamente pelos cortes de gastos com saúde, farmácia popular, cortes e mudanças nos programas de transferência de renda realizados por Bolsonaro. O caráter truculento do presidente e a demonstração de desdém com o sofrimento das famílias durante o período mais agudo da pandemia de Covid-19 no Brasil foi igualmente muito mal visto.

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Devemos lembrar também que a maior parte das mulheres evangélicas lutam cotidianamente contra a opressão masculina em suas casas, trabalhos e mesmo na hierarquia eclesiástica. Ainda que, de uma forma geral, não se assumam feministas, muitas mulheres evangélicas são chefes de família, ocupam cargos nas igrejas, sabem de sua importância na reprodução econômica e moral dessas instituições e não gostam de ser mal tratadas. Analogamente, a postura de Bolsonaro ao longo de toda a sua vida pública foi de um antagonismo às mulheres sem precedentes em nossa história republicana. Logo, nada disso passa sem ser visto.

Revista Senso – De que maneira Bolsonaro e Lula se portam diante do eleitorado evangélico?

Christina Vital – Lula sempre esteve ao lado de evangélicos, fez alianças com o segmento desde as eleições de 1989, governou com líderes religiosos indo francamente em seu gabinete, deu a políticos evangélicos cargos no governo, flexibilizou taxações sobre os templos, enfim, seu histórico de relação com católicos e evangélicos na política é longo. Nas eleições, acompanhando a mudança na correlação de forças na sociedade, foi ampliando a visibilidade e o espaço de evangélicos nas campanhas e nas eleições de 2022. O Núcleo de Evangélicos do PT está em plena atividade organizando encontros com líderes e com a base evangélica em diferentes estados, contando com fieis de várias denominações. Bolsonaro fez franco uso de uma identidade cristã em sua candidatura em 2018 e reforçou a estratégia no presente período eleitoral, apostando na belicosidade como forma de inflamar sua base. Assim, diz-se perseguido e agente de uma batalha do bem contra o mal.

A diferença principal entre o uso da linguagem religiosa nas campanhas de Lula e Bolsonaro é que o primeiro trabalha em uma perspectiva plural, de inclusão e respeito a todas as tradições, enquanto Bolsonaro busca se apresentar como o verdadeiro representante de uma cristandade conservadora na política, com o casal que reúne um católico e uma evangélica fervorosa (Michelle Bolsonaro). Assim, Lula aposta em uma chave democrática e pluralista, e Bolsonaro reforça uma noção liberal de democracia na qual o consenso não passa de uma mera sobreposição do desejo da maioria (em termos de poder político e econômico). Nesta perspectiva, as minorias deveriam somente se submeter a este grupo majoritário. Uma forma de “ditadura da maioria”.