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A saudade que co-move

A saudade que co-move

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Eu aprendi com Roberta Miranda que a saudade é uma “palavra triste quando se perde um grande amor”. Difícil desassociar a saudade da dor, do sofrimento, não é? Talvez seja por isso que ela é tão cantada. Afinal, a música é uma forma de fazer vibrar as palavras, de transmutá-las em ondas que se unem ao mar do universo.  Realmente, tem um tanto de saudade sofrida, doída.

Tem saudade daquelas pessoas que morreram – e essa é uma saudade que por causa da morte, a gente não consegue matá-la. Como nos ensinou Chico Buarque, “a saudade é o revés de um parto”.

Tem saudade de lugares que visitamos – e que volta e meia a gente visita esses lugares não mais de carro ou avião, mas muitas vezes pelos sentidos, pela sensação. Eu mesma não posso sentir um cheiro de manga espada que, em um segundo, volto pra casa de meus avós lá em Montes Claros. E sim mangas diferentes têm cheiros diferentes!

Tem saudade de relacionamentos que mereciam ser esquecidos – e que volta e meia essa memória presente na saudade nos faz esquecer dos motivos que deveriam nos fazer não mais pensar nessa pessoa.

Tem saudade de tempos, de fases – e que por serem tempo não podem ser aprisionados nos contornos da memória. Às vezes a gente já nem sabe se o que lembramos é verdade ou não. Fica tudo bagunçado em uma mistura daquilo que aconteceu e daquilo que a gente queria que tivesse acontecido.

Tem saudade de casa – essa é uma saudade que muda a chave da porta, que faz pão de sal só existir de olhos fechados, que faz a gente se descobrir estrangeira no próprio espelho. Essa também é uma saudade criada por muros levantados, por fronteiras imaginárias, que separam famílias e esmigalham sonhos.

Tem saudade que é quase remorso – talvez seja um pouco sobre essa saudade que Bernardo Soares, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, tenha escrito: “Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!”

Para refletir sobre esse tema, reli livro “O que é saudade?” (2010) da teóloga e filósofa Ivone Gebara. Para ela, “saudade é a marca e a emoção do reconhecimento de que houve encontros e caminhos que nos conduziram aonde estamos, houve relações que tiveram importância em nossa vida. E isto para além da dor que provocaram e das perdas que significaram”. E ela completa: “saudade é, de certa forma, o reconhecimento do que foi e até gratidão pelo que foi” (p. 134-135).

Bíblia e saudade

E tem saudade na Bíblia também! Algumas das epístolas bíblicas mostram a saudade marcando a história do povo do Caminho (e aqui, obviamente, eu procurei por traduções que usavam a palavra saudade):

Filipenses 1, 8 “Deus é minha testemunha de como tenho saudade de todos vocês, com a profunda afeição de Cristo Jesus.”

Filipenses 4, 1 “Portanto, meus irmãos, a quem amo e de quem tenho saudade, vocês que são a minha alegria e a minha coroa, permaneçam assim firmes no Senhor, ó amados!”

1ª Tessalonicenses 2,17 “Quanto a nós, irmãos, separados de vós por pouco tempo, longe dos olhos, mas não do coração, redobramos o esforço para ir rever-vos, tão grande era nossa saudade”.

 

E Jesus, será que ele teve saudade?

Iniciando seu ministério público. Jesus sentiu falta de sua casa? De seu pai?

Subindo ao monte. Estava Jesus indo matar uma saudade de si mesmo? Buscando ficar um tempo a sós?

Passando 40 dias no deserto. Quais foram as pessoas que fizeram falta pra ele ali?

Ressuscitando Lázaro. Será que Jesus estava evitando ter saudade de um amigo querido?

E na cruz? Jesus teve saudade de Deus, que parecia ter lhe abandonado?

 

E sentir saudade de Jesus, você já sentiu? Aquele choro dentro do quarto, que ninguém vê, quando você grita em silêncio: “Maranata! Ora vem, Senhor Jesus”. “Maranata! Ora vem, Senhor Jesus”. “Maranata! Ora vem, Senhor Jesus”. Aqui eu nos lembro com carinho das palavras do Mestre registradas em João 16, 22: “Assim acontece com vocês: agora é hora de tristeza para vocês, mas eu os verei outra vez, e vocês se alegrarão, e ninguém tirará essa alegria de vocês.”

BRASIL – saudade como afeto coletivo e político

Que sentimento é esse que corta o peito, que dilacera a alma, mas que só diz uma coisa: “te amo”? Como afirmou Ivone Gebara, “a saudade dos outros nos aproxima de algo misterioso em nós mesmos” (p. 63) – e, para mim, esse mistério é essa nossa capacidade de amar. Temos saudade do que amamos, de quem amamos.

E em sendo amor não dá pra produzir somente dor e angústia. Saudade também cria beleza e a beleza, como nos ensina Ivone Gebara, nos comove. Co-move, ou seja, “move-nos com”. Afinal, ainda para a teóloga, “uma tristeza é bela porque é capaz de mover nossas entranhas para direções inesperadas” (p. 73).

Para aonde a saudade está nos movendo enquanto coletividade? Uma saudade sentida coletivamente, me faz pensar nessa habilidade de, assim como Gebara afirmou, “reconhecer que algumas situações vividas ainda são capazes de nutrir nossas aspirações e nossa vida presente” (p. 16).

A saudade que mobiliza o presente impacta o futuro, mobiliza o futuro, transforma o futuro. Por isso, talvez seja possível pensar em uma saudade daquilo que ainda não aconteceu. Uma saudade que surge como um medo de que as coisas não aconteçam e, ao mesmo tempo, como uma força que pode aspirar a um outro futuro.

E se é sobre futuro e saudade que estou falando, é possível pensar em tantas saudades que tenho em mim e que sinto de maneira coletiva.

Eu tenho saudade de uma nação

Que dá de comer aos que têm fome;

Que dá de beber aos que têm sede;

Que hospeda o estrangeiro;

Que veste aquele que está nu;

Que visita o que está doente;

Que vai ver o que está na prisão.

 

Eu tenho saudade de uma nação

Na qual as travestis tenham uma expectativa de vida muito maior do que a minha;

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Na qual as mães pretas saibam que seus filhos voltarão para casa depois da escola;

Na qual as avós encham a geladeira de comida pro almoço de domingo;

Na qual os trabalhadores não passem 5 horas dentro do transporte público;

Na qual as crianças sejam protagonistas do reino de Deus.

 

Eu tenho saudade de um país que ainda não é o que pode ser.

Eu tenho saudade de uma população que celebra ao som do samba,

E que chora ao som de Geraldo Vandré.

Eu tenho saudade de uma terra que enegrece sua história,

E que valoriza os povos originários em seu presente.

 

Eu tenho saudade de construir um país com sonhos utópicos.

De imaginar tudo diferente.

De co-criar.

De esperançar.

Afinal, como escreveu Ivone Gebara, essa é a “saudade transformada em húmus da história, em elos de continuidade entre o ontem e o hoje” (p. 135). E eu digo mais, elos de continuidade entre o ontem, o hoje e o amanhã.


Referência

GEBARA, Ivone. O que é saudade. São Paulo: Brasiliense, 2010.