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A parte que não falta

A parte que não falta

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Ser escritora é um eterno acusar-se. A cada texto publicado, ideia construída, posição defendida, evidenciamos quem somos e um pouco do pouco que compreendemos do mundo. Acontece que após o fim de um texto, continuamos ali, refletindo a respeito de tudo que pensamos saber. E nesse pensar e repensar, algumas posições vão perdendo seus sentidos enquanto outras se fortalecem e ganham contornos intensos e concretos. Então, precisamos, com cuidado e respeito, deixar de lado aquilo que não mais usamos e partir para novas buscas.

Há cerca de pouco mais de um ano, publiquei neste magazine um texto com o seguinte título  A parte que falta: o que é a espiritualidade?, e abri o diálogo para pensarmos o que seria essa vivência que chamamos por espiritualidade. No texto, tento ilustrar esse sentimento utilizando a obra A parte que falta de Shel Silverstein, e chego a algumas breves conclusões não muito bem exploradas. Hoje, aproveitando a reflexão anterior e acrescentando novas percepções, gostaria de falar sobre esses pontos que ficaram abertos e, talvez, me contradizer.

Apesar de falar da parte que falta, o que se conclui da obra de Shel Silverstein é que ela não existe, pois até o mais perfeito encaixe que parece suprir a nossa necessidade de completude não cessa a vontade que temos de ir adiante, de buscar o novo, desenvolver novas habilidades, hábitos, manias. O que buscaremos, e onde se dará essa busca, é que vai direcionar esse caminho que, a priori, não está definido por ninguém. A busca é sempre resultado do desejo, não da falta, e desejo não é rocha que se tira as medidas para um encaixe perfeito, é líquido, toma a forma do lugar que o colocamos, e, às vezes, derrama, se perde, evapora, ou preenche lugares que não lembrávamos que estavam vazios.

Por ser maleável, se encaixa na realidade que apresentamos a ele, toma a forma que lhe é permitida no momento. Então, “a parte que falta” diz muito mais sobre o que não falta, pois somos nós quem damos forma às nossas buscas. Cada um conhece a sua realidade, o que lhe é possível procurar no momento. Conforme a realidade muda, a busca também toma outros rumos, outras possibilidades.

Não podemos mudar aquilo que não conhecemos, a mudança que nos cabe cai sobre isso que temos, que somos, que aprendemos a respeitar e entender. Nosso corpo, nossa realidade, nossa história, nosso passado. Tudo isso agrega o modo que construímos nossas buscas. Então, o que falta às vezes é uma reflexão sobre o que se tem, se fez, se é.

Perdemos muito tempo tentando caber em realidades alheias que parecem mais belas, mais profundas, mais divinas, mais sábias, e esquecemos que quem dá forma e sentido para as vivências e conhecimentos adquiridos somos nós. Podemos ler os mesmos livros, ouvir as mesmas músicas e ter os mesmos trabalhos, mas significaremos sempre de maneiras diferentes. É necessário um olhar crítico aos modelos de vida que nos são apresentados, ou vendidos.

Além desta questão, A parte que falta também mostrou que podemos ser felizes na nossa incompletude, a falta não é um grande problema que precisa ser resolvido para que possamos, finalmente, viver em paz, é apenas uma realidade. Há muito valor nas vivências simples do cotidiano, nas pequenas felicidades que cada um sabe onde toca, nas relações que construímos com as pessoas. Penso que construímos vários sentidos quando paramos de buscar por um único que independe de nós, do tempo, da época, dos outros.

No texto que escrevi há um ano, chamo essa busca de espiritualidade e sobre ela falo o seguinte:

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A espiritualidade denota uma percepção da realidade e a vontade de viver uma vida com consciência das relações éticas e pessoais que desenvolvemos com o outro. Traz a reflexão existencial para o cotidiano e coloca em movimento o pensamento sobre o novo como chave de entendimento das situações em que nos vemos, sem nos fazer estagnar na conformação, mas também trazendo à baila a realidade de cada um, pois é também um desenvolver subjetivo.

Bom, penso que a descrição tem sim o seu sentido, e a definição faz parte do processo de conhecimento, mas talvez essa busca tenha também outros nomes além da espiritualidade, nomes esses que não consegui visualizar na época. Entre o corpo, espírito, consciência e desejo, as águas se misturam e fica difícil dizer o que é e o que não é, e aqui me cabe assumir minha contradição.

Talvez essa percepção da realidade seja mesmo uma forma de espiritualidade, mas pode ser também uma consciência do corpo, da realidade, da terra, do meio ambiente. Consciência de si e do outro, alteridade.