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Empregabilidade de cientistas da religião – Uma reivindicação justa e uma abordagem equivocada

Empregabilidade de cientistas da religião – Uma reivindicação justa e uma abordagem equivocada

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A pergunta pela existência (e até pertinência) de um campo de trabalho (remunerado) para estudantes que buscam os cursos de graduação (e pós-graduação) em Ciência da Religião/Ciências da Religião/Ciências das Religiões é uma constante tanto nos próprios cursos e Instituições de Ensino Superior que os oferecem, quanto por parte das agências e instâncias reguladoras da Educação no Brasil. O questionamento pela formação pretendida e pelo campo de atuação de egressas e egressos está na origem de qualquer proposta de formação de curso e é um item de qualquer processo de credenciamento, avaliação e recredenciamento. Imaginando um cenário ideal, supor-se-ia, inclusive, que essa é uma preocupação de todos os corpos docentes dos cursos e das diversas instâncias institucionais nas quais eles são oferecidos.

Não parece ser, no entanto, o que o Editorial do volume 22, número 2 de 2022 da Revista de Estudos da Religião (REVER) supõe. Afirma-se, literalmente: “Na prática, têm sido mantidos os interesses dos professores dos cursos de CR, que continuam a usar os cursos de CR para colocar teólogos no funcionalismo público e fazer uma manutenção de postos de trabalho a professores não cientistas da religião” (p. 11). O tema é apresentado como uma questão de classes com “interesses antagônicos” – a “classe” de corpos docentes (professores e professoras) e a “classe” de discentes. Não há nenhuma referência que evidencie a perspectiva teórica e conceitual do uso de “classe” ou como tal aporte é transportado para a relação entre docentes e discentes e poderia ser importante refletir sobre essa questão no âmbito das discussões sobre capital e trabalho no campo da Educação (pública e privada) no Brasil. De qualquer forma, não discutirei aqui como a perspectiva de “luta de classes” pode (ou não) ser aplicada ao tema da empregabilidade de cientistas da religião.

Há inúmeras questões nessa breve (5 páginas) reflexão sobre “Contratação de cientistas da religião como professores de cursos de ciência da religião” que merecem atenção, mas pretendo refletir apenas sobre algumas usando esse escrito como ponto de partida, sem desconhecer que há uma produção e uma discussão muito mais amplas sobre o tema e que o próprio, às vezes, parece desconhecer. Começo numa perspectiva assumidamente pessoal (não está evidente se a perspectiva do autor é a mesma): eu sou um teólogo, com “formação linear” (Bacharelado, Mestrado e Doutorado) em Teologia e, atualmente, atuo num Departamento de Ciência da Religião de uma universidade pública. Mais especificamente minha formação pregressa tematizou a relação entre teologia e diversidade sexual e de gênero e minha atuação atual (conforme definida pelo edital da vaga para concurso) se dá na relação entre religião, educação e gênero.

Essa questão pessoal que, para mim, não é menos política ou teórica, é importante por duas razões em relação ao texto em discussão: primeiro, pela questão óbvia da relação entre Teologia e Ciência da Religião e, segundo, pela forma como a questão de gênero é acionada. Embora o texto não discuta a questão da empregabilidade de estudantes (de graduação e pós-graduação) de Teologia, esse é um assunto que também tem sido pautado por quem se forma e atua nessa área (especialmente para quem não pretende ou não tem a possibilidade de atuar no âmbito das igrejas, sem dúvida ainda o principal “campo de trabalho” para quem tem essa formação). Ficando no âmbito pessoal, eu mesmo atuei em diversos empregos nos setores privado e público (incluindo aulas de inglês e cargos políticos em gestão pública) durante e após minha formação acadêmica (na graduação e pós-graduação) antes de vir a atuar (como docente) na Teologia e, depois, na Ciência da Religião, precisamente porque o campo de trabalho “assumido” para teólogas e teólogas está no âmbito de controle das igrejas e suas prescrições (inclusive quando o assunto é Educação Superior). Essa não é uma realidade incomum para egressas e egressos dos cursos de Teologia e, no meu caso, tem um componente adicional que me leva ao segundo ponto.

A história é longa e até já escrevi um livro sobre o assunto (livro Há vida depois da igreja), mas o ponto é que a minha não “empregabilidade” como teólogo está diretamente relacionada com questões de gênero e sexualidade. O fato de me afirmar, hoje, aberta e publicamente como um homem gay e, especialmente, de trabalhar com questões de diversidade sexual e de gênero no meu labor acadêmico foi (e é) decisivo na minha empregabilidade (no geral e no campo religioso em particular). Isso explica, inclusive, porque muitas pessoas LGBTQIAP+ decidem (não sem prejuízos em vários níveis) ficar “dentro do armário” ou não tematizar essas questões em suas pesquisas. A situação é tão ou mais difícil (e violenta) para mulheres que fazem sua formação acadêmica nessa área (identificando-se como feministas ou não). Além dos números e estatísticas que podem ser facilmente acessadas e verificadas, a minha experiência de mais de vinte anos trabalhando com essas questões me permite afirmar que os desafios nessa seara são inúmeros e o heteropatriarcado estrutural (ao lado do racismo e do classismo) seguem operando de maneira arrasadora nas instituições.

Nesse sentido, além de teoricamente equivocado, o acionamento da questão de gênero no referido texto para contrapor a contratação de mulheres à contratação de cientistas da religião é politicamente pernicioso. Em primeiro lugar, o artigo parece desmerecer a discussão do tema em Associação da área e a menção em recentes relatórios de área da CAPES à necessidade da superação das desigualdades de gênero e raça (essa segunda não mencionada no texto) ao dizer que “muito se fala na ANPTECRE sobre a importância de uma maior contratação de mulheres como professoras de cursos de CR”, e, logo em seguida, fazer a seguinte comparação: “Mas não há discussões de fôlego sobre a contratação de cientistas da religião pela associação. Se um homem com formação linear em CR – graduado, mestre e doutor em CR – competir por uma vaga num programa contra uma mulher que tem graduação em teologia, mestrado em psicologia e doutorado em história, por exemplo, a mulher será priorizada” (p. 9). Não se reflete, por exemplo, sobre o caso de mulheres com a mesma formação que homens e se, nesse caso, deveria haver algum tipo de priorização.

A própria discussão sobre a aplicação do conceito de “classe” (referido em outro momento no texto) ao coletivo de “mulheres” tem sido amplamente discutida e questionada no contexto do feminismo (veja Saffioti). Ainda assim, tratar “cientistas da religião” e “mulheres” (ou pessoas negras, com deficiência, trans…) como grupos equivalentes (e concorrentes) reforça os sistemas e mecanismos sexistas (racistas e classistas) em todos os âmbitos sociais e, nesse caso, na Educação Superior. A comparação é, no mínimo, esdrúxula, e carece de qualquer perspectiva de análise interseccional das relações sociais mais básicas. Sugere que a questão de justiça de gênero (ainda quando se assuma que a reflexão guarde alguma simpatia ou acordo com essa perspectiva) coloca-se como um empecilho ao que entende que deveriam ser os critérios para contratação de docentes e alimenta os preconceitos e as práticas sexistas de plantão, sempre dispostas a culpar as mulheres pelos fracassos do sistema que eles próprios criaram e do qual se beneficiam.

Aliás, uma das questões a ser discutida em relação à reflexão proposta é a ênfase na linearidade e na disciplinaridade como garantia (desejabilidade) para a empregabilidade. Há que se reconhecer o baixo número de docentes com formação em Ciência da Religião nos cursos da área – poucas pessoas contestariam isso e, como dito, é possível imaginar que essa questão seja tema nos cursos e instituições que oferecem essa formação. É evidente que essa deve ser uma questão, inclusive, nos Programas de Pós-Graduação – ainda que o texto aparentemente não faça uma distinção entre graduação e pós-graduação. Estatisticamente falando, o número de estudantes formadas e formados na área que atuarão na pós-graduação (assim como em qualquer área) é significativamente menor do que aquelas e aqueles que buscarão carreiras profissionais em campos de trabalho diretos ou, usando a terminologia e conceituação proposta, “aplicado”.

Nesse sentido, associar a “aplicação” da Ciência da Religião à contratação de docentes para atuação em cursos da área não pode ser o principal objetivo da discussão sobre “Ciência da Religião Aplicada” – tema do volume da referida Revista e dos artigos que a compõem e sobre os quais não há nenhuma referência no Editorial. A baixa empregabilidade de pessoas com formação em Ciência da Religião dificilmente pode ser atribuída (pelo menos como fator principal) ao fato de que os corpos docentes dos cursos são compostos por professoras e professos com formação em outras áreas (inclusive Teologia). As questões históricas, culturais, teóricas e políticas que marcam a área de Ciência da Religião, algumas mencionadas com imprecisão no texto, explicam as reservas e desconfianças em relação ao tema da religião de modo geral na academia brasileira (inclusive em relação à polêmica em torno do ensino religioso na educação pública) e em espaços e frentes de trabalho que poderiam absorver profissionais com essa formação. Eis aí um tema a ser aprofundado e para o qual a discussão proposta pelo texto não contribui.

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Contrariando essa lógica, a Universidade Federal de Juiz de Fora recentemente abriu edital para contratação de docente com formação em Ciência da Religião para a Faculdade de Educação. Trata-se de um caso inédito em universidades públicas no Brasil (que ademais são regidas por processos distintos daqueles de instituições privadas e numericamente inferiores) que prevê a contratação de profissional para atuação específica em relação à Licenciatura em Ciência da Religião, mas com potencial de ampliar o diálogo com a área da Educação e outras a partir dela. Não está claro no texto se é a esse edital que se faz referência (nota de rodapé 1 página 8), uma vez que não foi uma vaga ofertada pelo PPG (via de regra os PPG não fazem contratações, mas docentes que atuam nos departamentos podem solicitar credenciamento após ingresso e a partir de edital interno) em Ciência da Religião (que não teve nenhum de seus concursos anulados), mas pela Faculdades de Educação.

Mas, ainda que não seja uma vaga do Departamento de Ciência da Religião, a sua abertura é fruto de um diálogo produtivo de anos entre os dois departamentos e as respectivas áreas de conhecimento. Esse poderia, aliás, ter sido citado como um exemplo afirmativo da possibilidade de empregabilidade para cientistas da religião para além das perspectivas linear e disciplinar, mas não foi. Quando se olha para os cursos oferecidos e as trajetórias acadêmicas pessoais de egressas e egressos de cursos de várias áreas/disciplinas que tomam a religião como objeto de estudo, a questão linear e disciplinar se torna ainda mais complexa. Pensando em empregabilidade, alguém com uma formação não linear e não restrita a uma área específica tem tanto ou menos possibilidade de encontrar um campo de atuação (particularmente na academia) do que alguém que cumpra com esses requisitos na área da Ciência da Religião segundo os argumentos do texto.

As questões da linearidade e da disciplinaridade são problemáticas ainda por outros motivos. Também não há dúvidas de que diferentes áreas (como as mencionadas no texto) têm, na prática, composto seus quadros docentes com profissionais com formação na mesma área – no que poderia ser chamado de corporativismo acadêmico. O fato de ser realidade, no entanto, não justifica uma adesão não problematizadora a essa prática. Considerando a ampla discussão em torno de temas como inter/trans/multidisciplinaridade – inclusive numa área que tem essas perspectivas como premissas – parece estranho advogar por uma disciplinarização da área tendo como justificativa a reserva de mercado de trabalho ou a empregabilidade – por mais importantes e urgentes que sejam. Não se trata (novamente) de antepor ou contrapor a teoria à prática, mas de refletir sobre os mecanismos políticos e pressupostos pedagógicos que seguem sustentando uma perspectiva disciplinar que restringe as possibilidades de acesso a campos de trabalho. Não parece que é para isso que o texto aponta.

Qualquer área de atuação e interação humana é marcada por conflitos de interesse e disputas políticas. Por muito tempo se pretendeu (e em muitos espaços ainda se pretende) que esse não é o caso no âmbito da produção acadêmica e científica. Como o próprio texto alude, a área de Ciência da Religião e Teologia (CAPES 44) tem suas próprias questões que vão desde os recentes processos de reconhecimento de cursos, criação de uma área independente, a relação (por vezes problemática) entre Ciência da Religião e Teologia, a composição dos corpos docentes e discentes até a ocupação de espaços de decisão sobre os rumos da área. Todas essas questões, sem dúvida, carecem de maior aprofundamento e precisam ocupar aquelas e aqueles que têm interesse e atuam nessa área. Mas me pergunto até que ponto o tipo de abordagem proposta no referido Editorial ajuda ou torna ainda mais difícil uma construção teórica e política coletiva, justa e transformadora que afirme e consolide a área de Ciência da Religião – internamente, perante outras áreas e na própria CAPES – e garanta espaços qualificados e adequados de atuação para profissionais formadas e formados nessa área. Para além de possíveis divergências teóricas e políticas, esse poderia ser um tema que nos convoca como profissionais da área sem a criação de antagonismos contraproducentes.