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Pessoas com deficiência e a dignidade humana

Pessoas com deficiência e a dignidade humana

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Jonilton Aparecido dos Santos | Arquivo do Autor

Desde muito criança fui apresentado à igreja Católica, não somente pelo batismo, mas também pela vivência em comunidade, experienciada a exemplo dos meus pais: minha mãe, dentro do Apostolado de Schoenstatt, além de ministra extraordinária, e meu pai sempre contribuindo com ela. Venho de uma família pobre e periférica, que passou por diversas dificuldades de subsistência. A fé, rústica, sempre esteve presente em minha vida, com ou sem religião.

Lembro-me exatamente do momento em que entendi que tipo de religiosidade e espiritualidade eu gostaria de exercitar em minha vida. Em meados de 2002 fui apresentado à Pastoral da Juventude, organismo da igreja Católica que realiza formação integral, assessoria e acompanhamento de jovens sob a luz da teologia da libertação, e que está organizada por todo o Brasil há mais de 40 anos.

A formação integral contempla as diversas áreas do ser humano, a relação com o divino, relação consigo, com o outro, família e sociedade. A partir dessa relação formativa e espiritualidade pautada na realidade foi que senti a força para seguir a estrada da vida, que já sabia que seria pedregosa, afinal ser Pessoa Com Deficiência numa sociedade que não acredita na potencialidade, dignidade e, ouso dizer, humanidade desta parte da população, é sofrível.

A minha deficiência é tipificada como Cifoescoliose, que é uma curvatura da coluna, em resumo minha coluna tem o formato da letra “S” ocasionando pressão nos órgãos internos e uma corcunda externa. A causa é congênita, ou seja, má-formação ainda no útero. Identificar a deficiência no final dos anos 80 era muito difícil, e com a má vontade de médicos elitistas que atuavam nas periferias, era mais complicado ainda. Conta a minha mãe que quando percebeu que eu era “torto”, ainda um bebezinho, me levou ao médico e o mesmo a repreendeu dizendo que ela não sabia cuidar de criança e que estava “colocando o bebê pra dormir do lado errado”. Claro que minha mãe voltou nesse mesmo médico tempos depois para rebater essa agressão e questionar seu profissionalismo.

Enquanto PCD (Pessoa Com Deficiência) nunca senti meu corpo respeitado, e aqui trato com muita lucidez. Lembro que me entendi PCD ainda na escola, nunca era o escolhido para o time de futebol, de vôlei, handball ou qualquer outro esporte ou atividade escolar em grupo, afetivamente nunca despertei o interesse das meninas ou meninos. Com frequência era hostilizado como aberração.

Recebia indiferença ou negligência inclusive do corpo docente e outros trabalhadores das escolas. Lembro de uma situação em que fui proibido pela professora de ir ao banheiro por que, segundo ela, eu ‘me fazia de vítima’ para ficar saindo da sala (eu tinha 8 anos e um problema na bexiga que me fazia urinar muito), resultado: urinava na roupa e aumentava os tópicos de chacota por parte dos colegas.

A adolescência é, para a maior parcela da população, a fase de maior turbulência emocional e social, adicione a este contexto uma deficiência física, pele preta e estereótipos relacionados ao comportamento homoafetivo: um verdadeiro turbilhão! A minha vida social só começou a melhorar quando me aproximei de pessoas que me defendiam, ou choravam comigo quando a defesa não era possível. Violência emocional, física e psicológica no ambiente escolar desde o primeiro dia de aula, como falar sobre a existência de Deus e da bondade humana aos finais de semana na igreja? Ao mesmo tempo ia me aproximando cada vez mais da teologia da libertação, de causas a me dedicar e da militância em defesa de minorias.

Comecei a trabalhar bem cedo, ainda no ensino médio, queria independência financeira e novos espaços, novas vivências, olhares, sabores e pessoas. O que nunca esperei era vivenciar no ambiente corporativo o mesmo preconceito que havia vivenciado na escola. Foi quando percebi que seria necessária uma postura menos gentil e doce com as pessoas, de modo geral. Que a bondade e a misericórdia cristã, aprendida na igreja, não seria aplicada com tanta frequência.

Quando iniciei a minha primeira graduação, desde o primeiro dia, observei olhares curiosos e comentários aleatórios, como já estava ‘acostumado’ relevava. Diversas vezes tive minha capacidade intelectual e física questionada por colegas da faculdade e por professores. Acreditei que tal capacitismo ficaria limitado à boçalidade daquelas pessoas, porém, quando ingressei na pós-graduação fui insistentemente confrontado quanto à minha capacidade intelectual. Lembro de um episódio em que uma docente falava mais alto comigo, acreditando que eu era deficiente auditivo ou intelectual, compreensível se levar em consideração a ausência de PCDs no ensino superior.

Ainda sobre o mundo corporativo, trabalhei, também, como professor em escolas. Lembro de uma situação bem específica em que fui agredido verbalmente em detrimento à minha deficiência física por três estudantes, a escola pouco se esforçou para resolver e ainda fui desmoralizado por outras turmas. Pouco tempo depois fui desligado. É difícil lutar sozinho, e quando quem deveria mediar se abstém, fica muito pior.

Quando ministro alguma palestra/aula em que falo sobre os desafios das pessoas com deficiência, procuro abordar um dos temas mais polêmicos que é a afetividade e relações sexuais. Sempre proponho o questionamento: Como você reagiria ao ser rejeitada/rejeitado explicitamente por ser PCD? O quanto isso abalaria sua autoestima? Essas perguntas parecem de fácil resposta, porém, analisando mais de perto podemos perceber que é negado o direito de amar às pessoas com deficiência.

Fala-se em inclusão, mas não se fala em integração. Incluir é trazer para o meio e lembrar que existem pessoas com deficiência, integrar é naturalizar a presença destas pessoas e garantir participação plena e efetiva em todas as atividades societárias: trabalho, educação, lazer, relações afetivas, viagens e etc.

Ainda hoje, mesmo com formação acadêmica acima da média, dominando 4 idiomas fluentes, viajando o mundo, circular em espaços tidos como de elite, contatos influentes, sou lido, julgado e muitas vezes impedido a partir da minha condição física. A luta é em dobro do lado de cá. A balança é desigual em todos os sentidos.

O que sempre me motivou a continuar remando é a crença, no possível, no mutável, na ressignificação, nas espiritualidades, no ser humano e na justiça, ora, nem tudo é falta de conhecimento, discriminação é crime e cabe a lei dar conta disso. Diversas vezes tive que me valer da lei para assegurar tratamentos mínimos básicos. Não sou forte porque passei por essas situações, eu estou vivo apesar delas.

Na busca de um refúgio espiritual para o que vivia diariamente, visitei diversas denominações religiosas, nunca passou de apenas visita pontual, sempre me identifiquei com a espiritualidade libertadora, que compreende, ressignifica, muda, se atualiza, é encarnada, não é alienada! O aconchego, a acolhida que recebi na pastoral da juventude fez toda a diferença para a forma com que enfrentei minha rotina e como me posiciono, ainda hoje, na vida.

Atualmente estou na assessoria da Pastoral da Juventude, contribuindo sempre que há oportunidade. Realizo acompanhamento de projeto de vida de outros jovens e sempre escrevo ou produzo conteúdos para as minhas redes sociais com temas relacionados à vida cotidiana da juventude.

Quando a gente fala da nossa dor sempre eliminamos algum resquício que possa ter ficado em nós. Nos faz mais fortes para o dia a dia, para encarar de frente e com pés firmes no chão toda a adversidade que tenta nos derrubar. A psicoterapia é importantíssima e todos deveriam ter acesso a ela, um sonho e luta pessoal é que possa haver profissionais psicólogos e assistentes sociais em todas as escolas públicas e privadas.

O Brasil registra 24% da população com algum tipo de deficiência, aproximadamente 46 milhões de pessoas. Onde estão essas pessoas no seu dia a dia? Aproveite este questionamento para usar os óculos da empatia. Ir ao encontro de quem é negligenciado, tal qual Jesus sempre fez, Ele sempre ia ao encontro dos esquecidos da sociedade. A cura que ele promovia às pessoas com deficiência era a libertação da prisão social que os cercavam. Seja você também um agente libertador das amarras sociais! E lembre-se: “sempre que for tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana” (Carl G. Jung).