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O olhar místico-teológico sobre Gaia

O olhar místico-teológico sobre Gaia

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Há um consenso nas ciências sociais de que a pluralidade é um fator incontestável da realidade. Dito de outro modo, ela não é apenas um discurso narrativo, antes é uma maneira de ver e praticar a vida em sua diversidade e concepções; daí uma de suas funções ser a de favorecer a aceitação da existência do outro e de sua absoluta alteridade. Essa constatação se dá a partir do entendimento de que as relações de poder precisam ser diminuídas para que o plural seja valorizado como constituinte de leitura da realidade. Estamos diante de um desafio sempre atual na conjuntura do mundo.

Assim, concordamos com Claudio Ribeiro quando define o princípio pluralista, objeto de alguns anos de trabalho com o tema, como “um instrumento hermenêutico de mediação teológica e analítica da realidade sociocultural e religiosa que procura dar visibilidade a experiências, grupos e posicionamentos gerados nos ‘entrelugares’” (RIBEIRO, 2020, p. 25). O entrelugar se constitui como um de seus pilares, uma vez que permite ultrapassar fronteiras e estabelecer pontes entre os temas da vida. Por essa razão, esse princípio é uma ferramenta hermenêutica, pois “possibilita divergências e convergências novas, outros pontos de vista, perspectivas críticas e autocríticas para diálogo, empoderamento de grupos e de visões subalternas e formas de alteridade e de inclusão, considerados e explicitados os diferenciais de poder presentes na sociedade” (RIBEIRO, 2020, p. 26).

Nesse sentido, tal visão contribui para ampliar o debate que segue na agenda da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos países ricos: desenvolvimento e meio ambiente. A partir do princípio pluralista, entendemos que não seja possível olhar essa temática a partir das questões colocadas pelos países ricos e seus representantes e muito menos pelo “mercado” que visa sempre ao lucro e ao acúmulo em detrimento dos recursos naturais. É urgente o olhar místico-teológico sobre o tema para assim ajudar a ver a realidade em sua pluralidade.

Os estudos mais apurados demonstram a complexidade e a interligação de tudo o que acontece no planeta. Essa complexidade de Gaia precisa ser respeitada em sua inteligência. Não é nada por acaso. Nada está fora de lugar por acaso. Nesse sentido, é preciso reconhecer que estamos imersos em uma “inteligência que excede em muito a nossa”, e agir assim “significa render-se humildemente a uma Inteligência mais sábia e soberana do que a nossa” (BOFF, 2009, p. 56). A relação que se precisa ter com Gaia, uma vez admitindo sua complexidade e inteligência, precisa ser espiritual, místico-teológica, tendo como princípio a pluralidade na leitura da realidade.

Não é mais concebível que a discussão em torno do clima, das matas, dos rios e das florestas deixe de fora o olhar místico-teológico. Por isso, dentre todos os olhares para esse dado da realidade, o místico-teológico se encaixa dentro do princípio pluralista.

A visão místico-teológica é uma dessas perspectivas críticas que favorecem o diálogo, além de empoderar grupos como os povos originários com sua cosmo-convivência que foi subalternizada por longos anos, tratando-os como inferiores e desprovidos de conhecimento sobre a vida. Está se provando que isso é uma falácia, e não poucos estudiosos e pesquisadores vêm se dando conta disso e buscando na sabedoria dos povos originários alternativas para lidar com o enorme problema em que a ciência/modernidade colocou o planeta.

Ailton Krenak, com um olhar plural, lembra que “a vida atravessa tudo, atravessa uma pedra, a camada de ozônio, geleiras. A vida vai dos oceanos para a terra firme, atravessa norte e sul, como uma brisa, em todas as direções. A vida é esse atravessamento do organismo vivo do planeta” (KRENAK, 2020, p. 28). Como raízes de uma árvore que aparentemente não se vê, mas está ali com suas inúmeras ramificações com beleza e resistência, o princípio pluralista ajuda a fazer uma leitura que seja mais próxima das reais demandas da vida.


Referências

 VEJA TAMBÉM
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BOFF, Leonardo. A opção-Terra: a solução para a Terra não cai do céu. Rio de Janeiro: Record, 2009.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

RIBEIRO, Claudio de Oliveira. O princípio pluralista. São Paulo: Loyola, 2020.