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Em tempos antigos, Aurélio Agostinho, filósofo nascido em 354, vivenciou uma dramática experiência humana e espiritual e privilegiou a construção da ética cristã com seus escritos a respeito do amor, da lei moral e da consciência (VAZ, 1999, p. 22). Entre eles, Agostinho anuncia a alteridade ao dizer que a medida do amor consiste em amar sem medida.
Na atualidade, Emmanuel Lévinas em seu livro Entre nós: ensaios sobre a alteridade (2010) ressignifica a compreensão do outro. O autor pensa na ética do encontro como socialidade e diz que desde toda a eternidade um homem responde por um outro, de único a único, que ele me olhe ou não, ele me diz respeito; devo responder por ele. Segundo Lévinas (2010, p. 214):
A cultura não é ultrapassamento, nem neutralização da transcendência; ela é na responsabilidade ética e na obrigação para com outrem, relação com a transcendência enquanto transcendência. Pode-se chamá-la amor.
Este ultrapassamento também é visto no livro de Pedagogia (Improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? (SCKLIAR, 2003). O livro aborda a questão da ética da alteridade na contemporaneidade em que o tema da diversidade não parece menos árido e distante. Este é um tema urgente na sociedade. Isto porque a ética da alteridade se revela na relação de amor. Carlos Sckliar (2003, p. 35) refere-se ao termo alteridade da seguinte maneira:
Em todo outro (autre se refere a todo o outro, em termos gerais; autri, por outro lado, poderia se traduzir pelo próximo, a outra pessoa) existe o próximo – esse que não sou eu, esse que é diferente de mim, mas que posso compreender, ver e assimilar – e também o outro radical, (in)assimilável, incompreensível e inclusive, impensável.
Em Agostinho, temos a importância de amar o outro. Em Lévinas, a responsabilidade ética. Em Sckliar, o diferente pode ser compreendido como autre, próximo. Eis a alteridade que se manifesta por inteiro. Essa é a celebração da Ética. Quando não há alteridade, não há assimilação do outro. Surge, então, o preconceito que é sofrido, muitas vezes, na trajetória de vida da pessoa surda. Historicamente, a pessoa surda foi identificada como um ser incompleto, incapaz.
Segundo o dicionário Lacoste (2004), as tradições morais têm por função permitir às pessoas entender-se, propondo-lhes um modelo de comportamento que tenha autoridade. Fornecem também pontos de referência que permitem definir aspirações e ideais pessoais. Esses ideais nem sempre podem ser vivenciados pelos alunos surdos, porque, nas escolas regulares, não aventam outras perspectivas que não seja a auditivo-oral. Sem reconhecer a modalidade visual-motora, pressupõem a surdez como ausência de pensamento. Witkoski (2009) entende que a exaltação bíblica da voz e do ouvido como o modo do homem e Deus se comunicarem expressa uma modalidade de comunicação linguística percebida por muitas pessoas como característica que identifica os seres humanos como racionais: “No princípio, era o verbo”.
Na verdade, a forma verbal de Gn. 1: “Deus disse” é transposta em forma nominal (“a palavra do Senhor”) e situada em posição de sujeito gramatical, não somente dos verbos de fala (dizer, chamar, abençoar), mas de verbos de ação (criar, acabar, separar). O verbo é definido por Agostinho (2018) como conhecimento acompanhado de amor. Então, dizer que “no princípio era o verbo”, significa ter acesso à possibilidade daquilo que o cristianismo chama de revelação. Quem diz palavra diz liberdade, e o homem que quer estar “à escuta da palavra” talvez só ouvirá o silêncio de Deus.
Se toda cristologia do verbo é teologia da palavra humana (LACOSTE, 2004, p. 1829), eis que a humanidade da pessoa surda se faz em sua forma mais completa: no silêncio que acolhe e no conhecimento que se revela. Acompanhado de amor entre aqueles que aprendem a se comunicar com as mãos, acolhimento e comunicação serão expressões de alteridade e transformação: “no princípio era a comunicação”.
ÉTICA COM A PESSOA SURDA
Comunicar-se é fazer justiça ao próximo. O outro, na sua alteridade negada, precisa ser reconhecido e servido para além dos interesses do eu. Para Márcio Paiva (2013), o amor por parte do eu é condição para alcançar o absolutamente outro. Comunicar-se é dizer “eis-me aqui”. Lévinas propõe o compromisso ético para que a ordem seja percebida. A ética da alteridade invade a convivência com a singularidade humana.
A autora Witkoski (2009) explica que, algumas vezes, o auto ódio é um processo de autonegação das pessoas surdas que assimilam os preconceitos, acreditando que “se a pessoa surda se comunicar oralmente será aceita na sociedade ouvinte”, bem como “a leitura da palavra falada pode “substituir” a audição”. Toda essa discussão sobre a questão da surdez e da “adaptação” da pessoa surda ao “mundo em que vivemos” é uma história relativamente recente. Se o diferente é aquele a quem falta um quantum para atingir o padrão normal, no caso a audição, a diferença não o é como tal, mas é antes uma incompletude como analisa Rojo, 2010. Para essa autora, a surdez é apenas uma diferença, uma singularidade. Ser uma pessoa surda é ser completa porque o que a diferencia é uma questão linguística. Assim, aprender Libras é um passo importante para viver a alteridade.
CONCLUSÃO
A singularidade só pode ser reconhecida se o outro se revelar por si. Quando sou eu quem fabrico a identidade do outro, o que se constrói é uma máscara. Nessa construção, a incomunicação se revela e a violência surge. A alteridade acontece quando o outro se revela a mim. Assim me responsabilizo pelo outro. Seu sofrimento impacta minha liberdade. Tenho que responder ao apelo do outro. Nessa hora, se há a omissão da ética, desumanizo o ser humano. Se compreendidas e acolhidas em sua diferença todas as pessoas surdas podem percorrer o caminho do conhecimento e da comunicação. Ética e alteridade são basilares nessa relação. Mas é preciso, antes, que o mundo ouvinte escute.