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A quebra dos silêncios e a ruína dos rituais de violência

A quebra dos silêncios e a ruína dos rituais de violência

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A impossibilidade de enunciação, como um pressuposto de existência política, se manifesta, comumente, como um dos múltiplos recursos de controle e de poder. O silenciamento político é imposto de forma compulsória e alimenta a construção de espaços políticos, epistêmicos e estéticos forjados nas ausências. A sua imediatez revela uma tática tacanha e sofisticada que naturaliza a clivagem entre os sujeitos que se reconhecem e os outros, silenciados e objetificados, denunciados pelos seus marcadores de diferença.

Os que se logram de posições privilegiadas dependem, de modo profundo, da instalação dos silenciamentos. Todas as pessoas têm voz, mas, de modo sistemático, algumas vozes são atacadas, a fim de que a pluralidade enunciativa dê lugar à narrativa única e aos seus valores mofados, coloniais e narcísicos.

A construção do outro, aquele que deve ser silenciado, acompanha um projeto político de dominação que se enraíza nos espaços sociais, inclusive, na imposição do silêncio para aqueles sujeitos lidos comumente como dissidentes, corpos descartáveis e, à luz de uma perspectiva colonial, desumanizados. A insistência nos nossos silêncios revela uma prática sofisticada e igualmente perversa dos sujeitos e grupos sociais que assumem uma centralidade epistêmica e política. A pluralidade de vozes desfaz a sua segurança que é construída a partir de diferentes mecanismos, mas que tencionam a implementação de um mundo político reduzido que odeia as diferenças. A norma e o silenciamento são impostos, pela imoralidade e fragilidade narcísica dos sujeitos e grupos sociais que os mantém os dispositivos de poder enunciativo.

A violência, nesse circuito, é administrada como um instrumento de manutenção de poder. A impossibilidade de fala, de expressividade e de percepção da existência do outro, enquanto sujeito, indicam as forças destrutivas que compõem as identidades normativas e os seus delírios de poder. A quebra desse ritual de violência é concomitante à própria implosão de uma visão autocentrada e contrária às implicações éticas do reconhecimento que, de modo profundo, consideram que o encontro depende da diferença.

O lugar social que determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas de outras perspectivas. A teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala nos faz refutar uma visão universal de mulher e de negritude, e outras identidades, assim como faz com que homens brancos, que se pensam universais se racializem, entendam o que signa ser branco como metáfora do poder, como nos ensina Kilomba. Com isso, pretende-se também refutar uma pretensa universalidade. Ao promover uma multiplicidade de vozes o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal. (RIBEIRO, 2019, p. 69).

Escrevo esse texto para sinalizar que a imposição do silêncio e das ausências de mulheres, mulheres negras, pessoas LGBTQIA+, pessoas com deficiência e demais sujeitos, nos espaços de construção de conhecimento, inclusive nas Ciências da Religião, revela que a manutenção discursiva, como critério de observação, neutralidade e tipificação entre os que são os “sujeitos” e os que são os “objetos”, traduz o quanto é preciso implodir epistemologias que foram e ainda são tecidas na colonização de corpos, afetos e “cosmopercepções” (OYÊWÙMÍ, 2021, p. 69). Questionar a ausência de outras vozes e outros corpos nos espaços de poder e de conhecimento significa quebrar “espelhos coloniais” (TEIXEIRA, 2021, p. 52) que nos ensinam a ver o mundo pelos reflexos de subordinação. Nessa quebra, colocamos em xeque a nossa convivência com os estatutos de subalternização que ainda circulam entre nós, como frutos de uma memória que neutraliza e extermina as diferenças.

A denúncia do epistemicídio, isto é, do dispositivo de poder que é “um elo de ligação que não mais se destina ao corpo individual e coletivo, mas ao controle de mentes e corações” (CARNEIRO, p. 97) e que radicaliza a destruição do outro como sujeito, tornando-o objeto, impede qualquer interesse ético. Eu dedico esse texto a todas as pessoas LGBTQIAP+, mulheres, pessoas negras, pessoas com deficiência e demais sujeitos lidos como dissidentes, presentes em todos os programas de Ciências da Religião do Brasil e que, recusando os lugares de subalternização impostos pelo epistemicídio, contribuem para a ampliação das nossas perspectivas.


Referências

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OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africado para os discursos ocidentais de gênero. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

TEIXEIRA, Thiago. Decolonizar valores: ética e diferença. Salvador: Devires, 2021.