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Profanando a religião: espiritualidade do cuidado e LGBTI+

Profanando a religião: espiritualidade do cuidado e LGBTI+

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Cada vez mais, tenho pensado em conceitos que me ajudem a explorar caminhos reconciliatórios entre o cristianismo tradicional e hegemônico e a diversidade sexual e de gênero. Neste breve ensaio, gostaria de apresentar o conceito de “profanação” do filósofo Giorgio Agamben, que tem sido fundamental para minha compreensão da espiritualidade como dimensão de cuidado para pessoas LGBTI+.

Primeiramente, para o debate que proponho, é importante que pensemos o que Agamben compreende por religião. O senso comum afirma que a etimologia de religião vem do verbete religare, que significa religar, conectar. Entretanto, para Agamben, religião vem de relegere, que significa justamente o contrário, ou seja, uma separação entre o divino e o humano.

Afirma Agamben (2007), em seu ensaio “Elogio da profanação”1AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.:

“O termo religio, segundo uma etimologia ao mesmo tempo insípida e inexata, não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de relegere, que indica a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o “reler”) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano”.

Por isso, para Agambem, “religio [religião] não é o que une seres humanos e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos”.

Religião se estrutura, assim, em uma dinâmica de separações. De um lado o sagrado, do outro o profano. De um lado o divino, do outro o humano. De um lado a transcendência, do outro a imanência. Nessa lógica, nossa existência foi capturada por esse modelo de ruptura que nos divide em alma e corpo. A alma estaria no campo do sagrado, do eterno; e o corpo no campo do profano, do mortal.

Mate a carne!

Nesse sentido, para “salvar” a carne, seria preciso sacrificá-la, porque é o sacrifício o rito de consagração das coisas desse mundo para que entrem em uma dimensão do sagrado, do separado. Inúmeros versículos bíblicos insistem nisso por meio do imperativo: “mate a carne!”.

Mateus 26, 41 “Vigiem e orem para que não caiam em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca”.

Romanos 8, 13-14 “Pois, se vocês viverem de acordo com a carne, morrerão; mas, se pelo Espírito fizerem morrer os atos do corpo, viverão, porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus”.

Gálatas 5, 24 “Os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e os seus desejos”.

Para as pessoas LGBTI+, a consequência prática dessa compreensão que afirma que é necessário sacralizar o corpo por meio do sacrifício e da sua morte, muitas vezes, é o adoecimento. Depressão, ansiedade, rejeição ao corpo, automutilações, suicídio, são alguns dos exemplos da materialização dessa teologia da separação. Nem sei dizer quantas vezes recebi mensagens de pessoas contando experiências de horror em relação ao seu próprio corpo e sexualidade. Por isso, pensando a partir de uma dimensão de cuidado, afirmo que é preciso profanar o cristianismo!

Segundo Agamben (2007), “profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular”. Quando afirmo que é preciso profanar o cristianismo, estou dizendo que é preciso implodir com esse abismo que nos separou de nós mesmas. É preciso promover uma experiência religiosa de união e não mais de separação. É preciso reintegrar o divino e o humano em uma dimensão de completude.

Profanando…

Mas, como profanar? Para Agamben, há duas formas de profanação: o contato e o jogo.

 1 Contato

Sobre o contato, Agamben (2007) explica que “o que foi separado ritualmente pode ser restituído, mediante o rito, à esfera profana. Uma das formas mais simples de profanação ocorre através de contato (contagione) no mesmo sacrifício que realiza e regula a passagem da vítima da esfera humana para a divina”.

Segundo o filósofo, por exemplo, se em um rito de consagração uma carne está reservada aos deuses, “basta que os participantes do rito toquem essas carnes para que se tornem profanas e possam ser simplesmente comidas. Há um contágio profano, um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado”.

O que Agamben chama de contato, vou chamar aqui de toque, ou seja, um contato intencional. Pensar no toque, hoje em dia, é muito emblemático. A pandemia do distanciamento. A proximidade do contágio viral. Álcool gel. Máscaras. Um arsenal físico e simbólico que me protege de você. Confesso que, para nós, LGBTI+, o medo do toque não é novidade. Como bem nos lembrou o Prof. Dr. André Musskopf, no artigo “AIDS e COVID-19: O que podemos aprender da comunidade LGBTI+ e qual o lugar da religião” , o estigma do toque que adoece marcou, a partir da década de 1980 a comunidade gay.

Se a pandemia despertou algo em mim, foi um apreço pelo toque. O toque é a materialização do reconhecimento. Quando nos sabemos tocadas, nos achamos no Outro, na Outra que reconstituem nossa integralidade. O toque que profana a cisão da religião é o mesmo que cura. Assim nos ensina o Cardeal Dom José Tolentino Mendonça2https://agencia.ecclesia.pt/portal/igreja-o-que-nos-cura-e-sabermo-nos-tocados-d-jose-tolentino-mendonca-c-video/ : “Somos curados pelo poder de Deus, mas o processo de transformação que se dá não é indiferente, o que nos cura é sabermo-nos tocados, no sentido de encontrados, reconhecidos, assumidos, resgatados, abraçados”. Essa é a primeira forma de profanação.

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2 Jogo

A segunda forma com a qual podemos profanar, de acordo com Agamben (2007), é pelo jogo. Ele explica: “A passagem do sagrado ao profano pode acontecer também por meio de um uso (ou melhor, de um reuso) totalmente incongruente do sagrado. Trata-se do jogo”.

Para pensar essa dimensão, gostaria de fazê-lo a partir do teólogo Rubem Alves, que publicou na Folha de São Paulo3https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2704201003.htm um texto no qual dizia que o corpo carrega duas caixas: uma caixa de ferramentas e uma caixa de brinquedos. E ele usou a mesma ideia em seu livro “Variações sobre o prazer”4ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer. São Paulo: Planeta, 2014., ao explicar que existem duas feiras: a feira das utilidades e a feira da fruição. Utilidade e fruição são dois termos usados a partir de Santo Agostinho, que afirmou que as coisas se dividem em duas ordens distintas: a ordem do uti e a ordem do frui, ambos termos em latim. Uti significa o que é útil, utilizável, utensílio. Usar uma coisa é utilizá-la para obter uma outra coisa. Frui significa fruir, usufruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma.

Seria possível afirmar, a partir de Rubem Alves, que a religião tem as duas caixas como dimensões de sentido: a caixa de ferramentas e a caixa de brinquedos. A questão que surge é que, em alguma medida, a religião se sacralizou de tal forma, que acabou sendo trancada em uma caixa de ferramentas e abandonou sua dimensão lúdica – a caixa de brinquedos. Nesse sentido, é necessário profanar a caixa de ferramentas, permitindo que ela se manifeste, também, como caixa de brinquedos. Ou seja, a religião não é somente algo que é vivenciado para algum fim, mas é também algo que é imaginado, sonhado, para nosso prazer.

Para Agamben (2007), “profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas”. É preciso invocar a ludicidade no resgate de nossos corpos. O corpo que brinca, o corpo que se alegra, o corpo que goza!

Espiritualidade profanada…

Tateio pelo tema da profanação no intuito de derrubar as muralhas que, histórica e teologicamente, têm separado muitas das experiências religiosas cristãs da integralidade dos nossos corpos. Por meio de novas e criativas formas de viver a religião, acredito que seja possível experimentar a fé que liberta, a fé que não dissocia o humano de sua sexualidade, a fé que celebra toda a diversidade.

Proponho aqui uma espiritualidade do cuidado que profana os corpos, por meio do toque e do jogo, restituindo-os à dimensão do prazer, e que afirma que é sim possível ser cristã e LGBTI+.

Profanemos por nós e por todas as pessoas que virão depois de nós!


Notas

  • 1
    AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
  • 2
    https://agencia.ecclesia.pt/portal/igreja-o-que-nos-cura-e-sabermo-nos-tocados-d-jose-tolentino-mendonca-c-video/
  • 3
    https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2704201003.htm
  • 4
    ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer. São Paulo: Planeta, 2014.