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Dezmandamentos: “Não matarás”

Dezmandamentos: “Não matarás”

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Sétimo texto da série “Dezmandamentos”. Essa é uma série de conteúdo teológico e pastoral voltada para a leitura dos Dez Mandamentos a partir das experiências de dissidentes sexuais e de gênero. Para ler o sexto texto, clique aqui.

Êxodo 20:13 “Não matarás.”

[Aviso de gatilho]

Esse texto começa com um aviso. A temática da morte, principalmente para pessoas LGBTI+, pode acionar gatilhos. Morremos, somos mortas, nos matamos. No mês de prevenção ao suicídio, é impossível não ler o Sexto Mandamento pensando justamente nesse tema. Esse não é um texto de uma especialista na área de saúde. É um texto-depoimento. Para ajuda acesse: Setembro Amarelo.

Eu tinha 15 anos. Logo no início da aula, fui chamada pela diretora do colégio onde estudava para conversar. Ela me disse que teria que contar para os meus pais o que acontecera no sábado anterior. Sem saber como lidar com aquela situação, tentei resolver da maneira que tinha aprendido em casa – pulando da varanda. Sai correndo da sala da diretora e corri para o último andar do pequeno prédio de três andares. Entrei pela porta da primeira sala-de-aula que vi e a atravessei correndo para a varanda. Subi na mureta. De repente, todo o andar gritava. Olhei para baixo. Meu coração me incomodava. Ele batia tão forte que não me deixava ouvir mais nada. Alguns eternos minutos depois, percebi que lá de baixo um grupo de alunos gritava em coro: “pula, pula, pula”. Uma voz por trás de mim me chamou: “Ana Ester”. Sua voz calma e mansa não combinava com o medo em seus olhos. Ela estendeu a mão – e eu não recusei.

Por muitas vezes depois dessa experiência, eu lidei com as situações difíceis dessa maneira: tentando escapar da vida. Esse não era o caminho mais “fácil”, era na verdade o único caminho. Eu não conseguia agir de outra maneira. Muitas pessoas vêm nesse comportamento uma simples tentativa de “chamar a atenção”. Não discordo. Mas, não é um chamar a atenção para si, como se eu fosse uma leonina fazendo de tudo para ser o centro das atenções, mas para uma dor que não para de doer, para uma ferida que não cicatriza, para um medo que paralisa. Em todas as minhas tentativas de rompimento com a dor, o meu maior sentimento foi o de decepção comigo mesma por ter não ter “feito da maneira correta”. Eu não brinquei com a morte, mas corri da vida, como se houvesse uma opção para além dessa dicotomia entre estar aqui e já não mais estar. Ao perceber que eu não estava conseguindo levar minha vida a cabo como queria, eu acabei criando outras formas de aos poucos ir me matando. Um suicídio crônico.

Não tenho intenção alguma em minimizar o suicídio ao compará-lo às pequenas mortes que experimentei. Mas, também, não posso ignorar o fato de que meu comportamento suicida sempre esteve intimamente ligado a uma tentativa de desligamento, de desconexão, de sabotagem. Uma das formas que percebo isso em mim é por meio de meu comportamento explosivo. Recebi, inclusive, um diagnóstico para isso: “transtorno explosivo intermitente” ou “síndrome do pavio curto”. Não é à toa que me reconheço tanto no conto “Perdoando Deus”, de Clarice Lispector, quando ela diz: “E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando”. Por anos, não soube lidar com minha impulsividade. Minha violência geralmente terminava com um soco na parede. Mas, um soco na parede não é um soco na parede, é um soco na mão, um soco em mim mesma. Diante das frustrações, eu agia de maneira agressiva e impulsiva. O tempo me ajudou bem a lidar com esse comportamento, e os medicamentos, que há onze anos tomo, também.

Obviamente, quando me converti ao Evangelho, o que já era difícil, ficou insuportável. Afinal, esses pensamentos de morte só podiam ser “setas inflamadas do maligno” (cf. Efésios 6:16). Eles só podiam existir porque eu estava “dando brecha a satanás” (cf. evangeliquês). Quando eu percebo todo esse sistema do cristianismo tradicional e hegemônico de controle baseado na culpa, eu só posso ser grata por ser lésbica. Afinal, foi por ser lésbica que eu saí (fui “saída”) de uma experiência comunitária de igreja baseada justamente nesses artifícios de regulação. Imagine se eu ainda estivesse ali, imersa em toda essa violência psicológica e espiritual… (Graças a Deus/a/e pela minha lesbianidade!). Essa jornada rumo a reconciliação da minha sexualidade com minha fé, trouxe também sanidade e inteireza diante dos fragmentos de esperança que hoje eu anuncio. E foi nessa jornada rumo a um cristianismo amigo da vida que eu conheci o “Jesus suicida”, de Marcella Althaus-Reid.

No primeiro semestre de 2021, eu estive envolvida em um projeto lindo. Fui convidada para escrever o comentário do Evangelho de Marcos para o segundo volume de The Queer Bible Commentary1Guest, D., Goss, R. E., West, M., Bohache, T. The Queer Bible Commentary. SCM Press, 2006. . E eu fui convidada justamente para dialogar com Marcella Althaus-Reid2Althaus-Reid, Marcella. Mark. In: Guest, D., Goss, R. E., West, M., Bohache, T. The Queer Bible Commentary. SCM Press, 2006., que escreveu o mesmo comentário só que para o primeiro volume. Eu me debrucei sobre o que Marcella escreveu. Quem lê essa autora sabe que uma página dos escritos dela são um livro inteiro de discussão. Um fato sobre o qual ela escreveu e que eu acho importante compartilhar aqui é que, especificamente sobre Marcos, em alguns manuscritos, esse Evangelho termina em Marcos 16: 8 e não em Marcos 16:20. Nesse caso, não há narrativa da ressurreição. Marcella, a partir desse fato, busca as imagens de Jesus no Evangelho que mostram as “mortes diárias” que ele experimentou para além da morte vicária da cruz. Uma dessas imagens é a de um “Jesus com pensamentos suicidas”. Mais do que explicar a proposição, acho que vale deixar aqui uma livre tradução do que ela escreveu:

“O Evangelho de Marcos começa com uma ação. Marcos mostra Jesus fazendo coisas em vez de simplesmente dizendo coisas. São as ações de Jesus e não apenas suas palavras que o levarão à ruína. Não existem histórias sobrenaturais de nascimentos milagrosos. Não há cenas de amor de mãe e filho. O que quer que tenha acontecido em sua infância é omitido em Marcos. O início das ‘boas novas’ são suas ações, não suas palavras. A passagem mais significativa não é o ritual do batismo, mas a narrativa das tentações. Jesus é um homem que parece estar caminhando sozinho, lutando contra as tenebrosas tentações. Não sabemos o que são, mas se incluirmos a referência de Mateus 4, elas se relacionam com muitas coisas, incluindo até pensamentos suicidas. Esse é um homem isolado, faminto, desempregado (a tentação do pão. Ele não tem dinheiro para comprá-lo, nem uma família que o sustente). Esse é um homem que está se perguntando se alguém em todo o universo se importaria se ele se jogasse do pináculo do templo, o que também parece uma espécie de protesto religioso. Por que a construção do templo fazia parte de seus pensamentos obscuros naquele momento? As autoridades, as tradições e os regulamentos do templo estavam deixando-o louco? E, por fim, há esse apelo pelo reconhecimento público, por fazer parte de algo, ser amado e respeitado pela sociedade, presente na metáfora da visão das cidades do mundo a seus pés, ou seja, pessoas do mundo se tornando amigas dele. Qualquer que seja o ponto dessa luta interior, aquele isolamento e crise que precede seu ministério público ou o tipo de trabalho voluntário que ele sentiu que precisava fazer para honrar sua própria identidade, estava ligado a um chamado de Deus em sua sociedade. Curiosamente, nesta história, não é uma família que está por trás de Jesus. Não é o estereótipo do homem que com muito esforço deve deixar a família e os amigos para se tornar sacerdote. Não, Jesus aqui já é um homem que foi separado de sua família e amigos, cujo chamado já vem em sua luta interior em busca de sua própria identidade divina. No entanto, o deserto não é uma imagem de isolamento em si, mas de isolamento no sentido de um local onde se encontravam muitas pessoas que não se enquadravam na sociedade”3Idem, p. 520..

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Que texto! Confesso que, na minha experiência de/com Cristo, não preciso me encontrar em Jesus para o seguir. Não preciso me achar em seu sofrimento, em suas angústias, em suas dores para crer que ele se compadece de mim. Mas, também confesso, que ler essa passagem me traz algum tipo de alívio, de perdão pessoal. A maneira tão única com a qual Marcella lê o episódio de Jesus sendo tentado no deserto, me convida a ler, também de maneira única, a minha própria vida. Talvez, essa interpretação de Marcella lhe soe como uma grande heresia. Concordo. A palavra heresia (do grego airesis) significa escolha, opção. Marcella escolheu ler esse texto a partir de uma perspectiva queer, a partir das experiências de uma comunidade de dissidentes sexuais e de gênero que, muitas vezes, se encontram nas trincheiras entre a vida e a morte. Mas, ela não nos leva ao deserto e nos abandona lá, ela anuncia a esperança ainda mergulhada na narrativa das tentações:

“Jesus sobreviveu à morte do isolamento, experimentou a ressurreição e voltou à vida de sua crise suicida por um ato de assumir a responsabilidade pelo que havia de diferente nele. Depois disso, ele encontrou muitos outros que sofreram como ele anteriormente. E ele encontrou o amor”4Idem, p. 522.

Jesus encontrou o amor. E manifestou o amor. E se tornou o amor. Desmandar o sexto mandamento implica em, antes de qualquer coisa, uma abertura para tocar no tema. O suicídio não pode ser uma temática que nos mantém reféns de nossos armários. Conversar, compartilhar, “comunitarizar” essa experiência me ajudou a me olhar com mais compaixão. Raul Seixas cantou “vem, mas demore a chegar, eu te detesto e amo morte, morte, morte, que talvez seja o segredo desta vida”5Música “Canto para minha morte”, de Raul Seixas. e eu o parafrasearia dizendo: “pequenas mortes e grandes ressurreições que talvez sejam o segredo dessa vida”.


Notas

 

  • 1
    Guest, D., Goss, R. E., West, M., Bohache, T. The Queer Bible Commentary. SCM Press, 2006.
  • 2
    Althaus-Reid, Marcella. Mark. In: Guest, D., Goss, R. E., West, M., Bohache, T. The Queer Bible Commentary. SCM Press, 2006.
  • 3
    Idem, p. 520.
  • 4
    Idem, p. 522.
  • 5
    Música “Canto para minha morte”, de Raul Seixas.