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Dezmandamentos: “Honra a teu pai e a tua mãe…”

Dezmandamentos: “Honra a teu pai e a tua mãe…”

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Sexto texto da série “Dezmandamentos”. Essa é uma série de conteúdo teológico e pastoral voltada para a leitura dos Dez Mandamentos a partir das experiências de dissidentes sexuais e de gênero. Para ler o quinto texto, clique aqui.

Êxodo 20:12 “Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá.”

Começo esse texto com um desejo enorme de não ter que enfrentá-lo. Muitas vezes, a escrita é assim… uma luta sem vencedores. Adiei até o último minuto. Pensei, inclusive, em desistir da série ou em deixar esse artigo em branco – como uma página a ser escrita por outra pessoa. Quando me propus a refletir sobre os Dez Mandamentos, por meio de uma hermenêutica lésbica-queer, decidi fazer isso a partir de narrativas que me escancaram, que me expõe. Em cada texto, de alguma forma, uma rachadura é feita em mim. Teologizar dói.

Mas, esse texto é desleal. Não consegui manter o acordo que fiz comigo mesma de me permitir a nudez. Aqui me visto, me agasalho, me cubro. Não porque exista em mim um desejo de me ausentar do texto, mas porque, de fato, para tratar sobre esse “mandamento bíblico” eu teria que despir outras pessoas. Essa deveria ser uma reflexão na qual eu convido vocês para conhecerem meus pais, minha família, minha infância, minha adolescência. Isso ainda não é possível.

Eu poderia tomar tantos caminhos nessa reflexão. Poderia falar sobre a família de maneira mais geral, apontando as tensões que marcam as vidas de LGBTI+ e o ambiente familiar. Mas, essa não é a minha concepção de uma hermenêutica queer feita a partir das minhas experiências sexuais. O que tenho proposto, desde o primeiro texto da série, é uma epistemologia da intimidade, da nudez, da implosão da privacidade. Sempre há algo que é só meu, um pedaço da história que é só minha e que coloco à mostra.

Marcella Althaus-Reid 1ALTHAUS-REID, Marcella. La teologia indecente: perversiones teológicas em sexo, género y política. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2005, p. 111., ao tratar sobre o processo de indecentamento (tornar indecente) da Virgem Maria, afirmou que era preciso “recuperar seus pecadinhos”. Talvez seja um pouco disso que me falte nessa hora: “recuperar meus pecadinhos”, escancarar o armário da memória e permitir que as histórias incontadas venham à tona. Mas, e quando os pecadinhos não são só seus? E quando tem mais gente envolvida nessas memórias? Talvez a história que eu achasse que fosse só minha na verdade não seja. Talvez a certeza de que eu estava propondo uma hermenêutica de desnudamento pessoal esteja, também, arrancando a roupa de outras pessoas. Afinal, estamos todas conectadas. Sou porque somos. Cada parte que exponho do meu corpo acaba revelando outros corpos também.

Quantas são as histórias que (ainda) não podemos contar? Histórias que são como cintos que não deixam a calça ser arrancada, que são como cintos de castidade que não permitem acesso à intimidade. Esse texto é uma decepção. Um texto não escrito. Um texto que me faz perguntar se algum dia essas histórias eu ainda irei contar.

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O quinto mandamento me desmandou.

Sinto muito, mas não estou pronta para mostrar meus pais pelados.


Notas

  • 1
    ALTHAUS-REID, Marcella. La teologia indecente: perversiones teológicas em sexo, género y política. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2005, p. 111.