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Querida Rita: vamos conversar sobre religião

Querida Rita: vamos conversar sobre religião

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Querida prima Rita von Hunty,

De verdade, você não é minha prima, mas de onde eu venho a gente tudo vira prima quando quer se aparecer pras amigas. E você (e eu) somos dessas. De qualquer modo, temos muitas outras coisas em comum e uma certa intimidade virtual, já que acompanho alguns dos teus programas. Em comum temos, pelo menos, a defesa de um pensamento crítico, a denúncia das estruturas e mecanismos de controle, violência e injustiça e a discussão sobre diversidade sexual e de gênero. Mas suspeito que uma conversa durante um café ou uma coca cola (deus nos perdoe) – já que eu não sou muito do chá ou da cerveja – revelaria outras parecenças.

Te escrevo porque eu me expresso melhor assim e porque tô toda desarrumada pra fazer vídeo ou chamada por algumas dessas plataformas digitais controladas por empresas bilionárias que sustentam e promovem o capitalismo disfarçadas de democratização da comunicação (coragem!) – por hoje. Não te escrevo para discutir nossas árvores genealógicas ou mesmo nossas coisas em comum, mas porque andei vendo uns vídeos seus e me preocupei. Também porque acho que você tem o senso de humor e o senso crítico necessários para não se ofender e levar consideração algumas coisas que quero te dizer – prima querida.

Vamos lá. Seus vídeos sobre religião [“O problema Deus”; “Bíblia: a sagrada escritura?” ; e o mais recente “É pecado ser LGBT?” – aquele sobre Feuerbach eu não assisti, pois tenho uma política estrita sobre homens, brancos, europeus, mortos – prefiro não].

Me preocupei ainda mais vendo o número de visualizações – ai, ai, ai, Rita, tem muita gente vendo isso. Não vai dar pra eu comentar aqui em detalhe todas as questões, então vou ficar no essencial por agora pra continuar a conversa depois. Ou não.

Como nós duas somos rigorosas e exigentes quando o assunto é pesquisa, informação e discussão teórica e conceitual, preciso te dizer que tem umas coisas lá que doeram nos meus ouvidos. Eu sei que a gente é de áreas diferentes (eu tentei te avisar), mas nem desculpando um olhar disciplinar estreito dá pra deixar passar. E quando o assunto é religião, é preciso abrir mais o campo de visão para ouvir outras vozes – aliadas, inclusive. As suas intuições e reflexões sobre monoteísmo (e seus males), sobre a forma como a Bíblia é (mal) lida e (mal) falada – especialmente por fundamentalistas – e a relativização da noção de pecado são muito pertinentes. Mas o caminho que você percorre em cada um desses temas é deveras problemático.

Deus, sem dúvida, é um problema – veja o livro A graça do mundo transforma deus – especialmente na América Latina. Mas a forma como você usa textos bíblicos para falar sobre a sua percepção de Deus contida neles simplifica tanto a coisa toda que fica difícil de acreditar na sua problematização. E aí não ajuda nem quem crê, nem quem não crê na construção de uma reflexão crítica. Aliás, a abordagem da bíblica é bastante common sense e careceria de um aprofundamento que não sei se é de seu interesse, mas ajudaria muito quem tem assiste (veja, por exemplo, as edições da Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana/RIBLA). E nem tem sete pecados capitais na Bíblia e toda a história de Lúcifer tá mais pra seriado mesmo do que para acuidade investigativa.

Em todos os vídeos você mistura (e confunde) temas apresentados na Bíblia e dogmas eclesiásticos (em geral Católico Romanos), que podem estar no mesmo universo de sentido (especialmente em algumas denominações e para algumas pessoas), mas estão longe de serem temas assentados e pacíficos. Tem conflito e disputa nas religiões – veja você – e nem sempre ganham os poderosos ou as suas perspectivas se impõem sem resistência e sem criação de alternativas. Especialmente no vídeo sobre a Bíblia você afirma que ela deve ser lida como qualquer outra literatura, refletindo compreensões de mundo contextuais e particulares, mas afirma que a Bíblia “mente” quando assume, por exemplo, uma perspectiva terraplanista ou geocêntrica. Ora, como poderia ser diferente se os conhecimentos para alterar essa visão apenas seriam formulados muito depois da “era do bronze”. Aliás, prima, “era do bronze”? Acaso não sabes de todo o processo de composição do que hoje conhecemos como Bíblia? – surgimento das narrativas, transmissão oral, registro por escrito, reconhecimento comunitário, organização dos textos, aprovação do cânon – tudo com muitas versões, disputas e conflitos ao longo de milhares de anos e sem consenso até hoje? Ai, ai, ai.

E só pra terminar essa coisa da Bíblia: aquelas referências sobre Levítico e tals, tá bem fraquinho e incompleto. Tá certo, levanta a discussão. Mas tem muita gente estudando e publicando sobre esse e outros textos com várias teorias e perspectivas bem mais fundamentadas e consistentes do que essas. Aliás, gente no Brasil e na América Latina, com propostas de leitura e interpretação muito mais divertidas e questionadoras do que suposições filosóficas que, no geral, carecem de provas materiais; não que elas me sejam tão necessárias, já que o meu pressuposto interpretativo é outro – Educação Popular e Leitura Popular da Bíblia (as duas com origens comuns, no âmbito de grupos e movimentos religiosos).

Mas minha principal dificuldade com a sua abordagem é justamente o conceito de religião. Você fala de Marx, marxismo, chama Foucault e alguns outros. Mas até mesmo essas abordagens já foram tão esmiuçadas, problematizadas e ampliadas, inclusive no campo da filosofia, mas principalmente na Ciência da Religião (Religious Studies/Religionswissenschaft) ou nas Ciências da Religião/Religiões (sociologia, antropologia, teologia, história…). A fenomenologia da religião, por exemplo, ajuda a gente a não cair na armadilha de pensar a religião (apenas) a partir de suas formas institucionais (em geral, autoritárias, antidemocráticas e bastante artificiais), mas evidenciar as formas de resistência e construção de religiosidades que contradizem os cânones oficiais e sustentam a vida de muitas pessoas e suas comunidades – especialmente na América Latina.

A gente concorda que não precisa de religião e nem de Cristianismo e nem de Bíblia, especialmente quando têm feito mais mal do que bem, manipuladas para a hegemonia política e econômica de a gente sabe quem. Mas tem gente que vai com religião. Tem comunista religioso e religiosa comunista – dentro e fora da tradição judaico-cristã. Reduzir toda forma de religião a um sistema autoritário e anti direitos per se, é simplificar a complexidade da própria vida e de como as pessoas e comunidades fazem sentido da sua experiência – e falam dela; muitas vezes em linguagem religiosa. Um pouco colonial, até. A gente precisa conversar sobre religião. Especialmente no Brasil e na América Latina esse é um tema que não tem sido enfrentado devidamente. A direita manipula para controlar, oprimir e explorar e a esquerda ou ignora benevolentemente ou aciona quando convém – mas, de fato, não entende e não estabelece uma relação crítica, construtiva e criativa.

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Tem algumas outras coisinhas, como: não é de Chico Buarque a frase “não existe pecado do lado de baixo do Equador” (quero crer que você saiba, só esqueceu de dizer), e a referência aponta justamente para as religiosidades indomadas e as sexualidades plurais vivenciadas nos trópicos em meio ao processo violento de conquista e colonização. Não dá pra deixar passar essas coisas gata. O povo não perdoa, prima.

Mas vou ficando por aqui que essa conversa já tá ficando meio longa. Amiga Rita, querida prima: recomendo a leitura dos estudos da religião e das teologias da libertação, feministas, negras, camponesas, ecológicas e ecofeministas, gays, lésbicas, queer, da deficiência… Essa galera aí tem pesquisado, estudado e se dedicado muito para resolver vários dos problemas que você levanta e seria uma pena ignorar esse conhecimento produzido e acumulado por décadas. Tem algumas referências aí, mas como você não é como as arrombadinhes que te seguem e não tem preguiça de pesquisar, vai achar bastante coisa boa pra ampliar os seus horizontes e ainda recomendar para elas.

Qualquer hora a gente bate um fio. Deus querendo.

Cordialmente,

Helga Diefenthaeller

[codinome e identidade nem tão secreta, André S. Musskopf – não pergunte o que é o “S.”]