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Contribuições das Ciências da Religião para as sociedades contemporâneas

Contribuições das Ciências da Religião para as sociedades contemporâneas

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Em tempos de ventos seculares e de ondas de conflitos religiosos, não seria coerente acrescentarmos um ponto de interrogação ao nosso título?

O horizonte religioso mundial revela um cenário de desfiliação e trânsito religioso, customização da fé, movimentos radicais, fideísmo, intolerância e fundamentalismo. Essas e outras questões fazem com que nem sempre a religião goze da simpatia popular e do apoio de setores da sociedade, que por vezes se posicionam abertamente contrários a ela. Uma prova dessa afirmação vem dos estudos demográficos do Fórum Pew para Religião e Vida Pública, realizados em 230 países e territórios. A conclusão publicada na Carta Capital demonstra que 16% da população mundial não possui uma filiação religiosa. Esse dado estatístico representa aproximadamente 1,1 bilhão de pessoas, o que corresponde ao  terceiro maior grupo da pesquisa, ficando atrás apenas dos cristãos (31,5%) e dos muçulmanos (23,2%), e à frente de grandes grupos, como o dos hinduístas (15%).

Apesar de apresentar o avanço da desfiliação religiosa, uma questão de fundo é importante na análise social da religião: 84% da população mundial possui uma filiação religiosa. A despeito de autores do século XIX, como Max Weber (Sociologia das Religiões), e Karl Marx (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel), e do século XX, como Peter Berger (O dossel sagrado), concluírem que as relações históricas da modernidade culminariam inevitavelmente na extinção da religião, isso não aconteceu. A religião se viu eclipsada por elementos como a objetivação da natureza, a racionalização e o desencanto do mundo, a secularização, a laicização e a polarização do sagrado para a esfera privada. No entanto, o que parecia representar a pá de cal sob o túmulo da religião, foi o substrato para suas adaptações.

Na esteira dessas observações é que retornamos ao questionamento inicial: é possível elencar contribuições das Ciências da Religião para as sociedades contemporâneas? Estruturamos essa questão a partir de uma constatação: de que a falta do conhecimento do que é Ciências da Religião, de seus conceitos, teorias, métodos, objeto de estudo e pressupostos, corrobora para que o senso comum a associe a estudos normativos e dogmáticos, bem como a interesses eclesiástico-institucionais. Essa edição          da Revista Senso busca – em tempo oportuno – apresentar ao público as Ciências da Religião, e demonstrar sua importância para os estudos da religião e suas contribuições para as sociedades contemporâneas.

 Ciências da Religião?

Agora sim o ponto de interrogação encontrou seu lugar devido. Não é tarefa simples, mesmo para o cientista da religião, definir em poucas palavras o que é Ciências da Religião. Uma das possibilidades é que se trata de uma disciplina acadêmica que se ocupa dos estudos científicos da religião, das religiões e de seus fenômenos a partir de uma análise isenta e estruturada metodologicamente. Os conteúdos apresentados na introdução exemplificam uma parte dos temas que as Ciências da Religião se propõem a pesquisar: 1) o horizonte das questões religiosas mundiais; 2) os estudos demográficos e estatísticos sobre dados religiosos; 3) a análise sociológica das relações entre religião e sociedade; 4) a capacidade histórica de adaptação e transformação da religião.

Os estudos da religião não nasceram com as Ciências da Religião. De acordo com Giovanni Filoramo e Carlo Prandi (As Ciências das Religiões), registros históricos revelam que os filósofos pré-socráticos gregos estudavam as religiões dos demais povos nos séculos VI e V AEC; os chineses desenvolveram estudos nos séculos V e IV AEC, e os muçulmanos no século IX EC. Esses estudos visavam o acúmulo do conhecimento histórico, bélico e estratégico, e a compreensão de questões apologéticas, filosóficas, antropológicas, sociológicas e teológicas.

As Ciências da Religião só foram instituídas como disciplina acadêmica na Europa a partir do século XIX. Seus fundadores foram: Max Müller, Cornelis Petrus Tiele, Pierre Daniel Chantepie de la Saussaye e Joachim Wach. Pedro Pereira (Uma viagem retrospectiva à Antropologia da Religião) considera que o mérito deles foi de sugerirem que as religiões primitivas poderiam ser estudadas a partir das regras do método científico. Para manter o caráter científico, eles postularam procedimentos metodológicos de análise comparativa, histórica, fenomenológica e sociológica das crenças e práticas religiosas.

As Ciências da Religião foram institucionalizadas no Brasil pela via da pós-graduação stricto sensu no final da década de 70, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) e na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

 Em que podemos ajudar?

Agora o ponto de interrogação é nosso – e a resposta também. As Ciências da Religião estruturaram seus estudos a partir de três pressupostos: 1) interdisciplinaridade: construção epistemológica coletiva da disciplina a partir da cooperação e interação com outras disciplinas como a História, Filosofia, Filologia, Teologia e Sociologia; 2) imparcialidade ou neutralidade axiológica: postura de isenção e suspensão de crenças e juízos de valor e verdade por parte do pesquisador na análise de seu objeto de pesquisa; 3) agnosticismo (ou ateísmo) metodológico: compreensão e análise da religião como fenômeno histórico, psicológico e social pertencente ao domínio da ciência, não adentrando as questões de existência ou não do transcendente. Esse pressuposto garante a cientificidade das Ciências da Religião.  Esses pressupostos garantem a isenção e a cientificidade das Ciências da Religião nos estudos da religião. Desse modo, podemos apresentar um rol de contribuições das Ciências da Religião para as sociedades contemporâneas.

Para o professor Flávio Senra, no artigo O teólogo e o cientista da religião, uma das principais contribuições das Ciências da Religião é o de oferecer um conhecimento qualificado, alicerçado em fundamentos científicos e não normativos a respeito da religião. É reconhecimento da religião como expressão cultural e patrimônio imaterial dos povos que possibilita a estruturação de análises sociorreligiosas na substanciação de pesquisas, decisões, diálogos, prevenção de impasses religiosos, mediação de conflitos e orientação de posturas em políticas públicas. Outra contribuição diz respeito à formação docente para o ensino religioso. Os conteúdos não normativos e os pressupostos das Ciências da Religião promovem posturas isentas e a cientificidade do ensino, o que corrobora na promoção do respeito e do diálogo inter-religioso a partir dos pressupostos da neutralidade axiológica e do agnosticismo metodológico.

Uma última consideração é que o campo das Ciências da Religião vem atualmente desenvolvendo pesquisas no desenvolvimento de importantes propostas de aplicação social dos seus estudos. Passos e Usarski (Compêndio de Ciência da Religião) relacionam possibilidades de aplicação nos campos das relações internacionais, no ensino religioso, turismo, educação sociopolítica, patrimônio cultural, nas ações pastorais e na psicoterapia. Pode-se acrescentar a contribuição para as relações que envolvem correntes migratórias, problema que a Europa vem enfrentando atualmente com as migrações muçulmanas.

Apesar das inúmeras possibilidades de aplicação e contribuição das Ciências da Religião para as sociedades contemporâneas, ela precisa vencer os pontos de interrogação presentes no desconhecimento público e na associação de sua figura a qualquer tipo de confessionalidade, além da missão de expandir sua participação, tanto nos espaços acadêmicos como nos espaços públicos.


Referências

BERGER, Peter L. O dossel sagrado. 8. ed. São Paulo: Paulus, 2012.
FILORAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Rio de Janeiro: Boitempo, 2010.
PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulus/Paulinas, 2013.
PEREIRA, Pedro. Uma viagem retrospectiva à antropologia da religião. Revista de Antropologia Experimental, Jaén, n. 16, p. 263-284, 2016.
SENRA, Flávio. O teólogo e o cientista da religião: religiografia acerca das interfaces entre Ciências da Religião ou Religiologia e Teologia no Brasil. Rever, São Paulo, v. 16, n.1, jan.  2016b.
SOCIEDADE. Pesquisa mostra que 16% da população mundial não têm religião. Acesso em 19 jul. 2020.
WEBER, Max. Sociologia das religiões. Lisboa: Relógio D’água Editores, 2006.