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Espiritualidade na perspectiva das Ciências da Religião

Espiritualidade na perspectiva das Ciências da Religião

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Existem muitas abordagens procurando entender o que é a espiritualidade e qual o seu sentido na vida humana. Podemos ter abordagens no âmbito da teologia, da medicina, da psicologia, da filosofia, da história, da sociologia, da antropologia social, da fisioterapia, das neurociências, da administração, das artes, dentre outras possíveis. 

Além disso, também encontramos abordagens mais funcionalistas, que procuram pensar a função da espiritualidade diante de diversos desafios, como o adoecimento, a construção de identidade, a gestão de pessoas, a descoberta de um sentido último para a existência, seu papel na vivência de conflitos, a libertação (em termos políticos, sociais, culturais e religiosos), etc. Também há abordagens mais essencialistas, que procuram identificar o que seria a “essência” da espiritualidade, procurando defini-la e caracterizá-la. A compreensão desta “essência” seria o ponto de partida para se refletir sobre a espiritualidade e suas funções na vida das pessoas. 

Neste universo polissêmico de concepções, algumas questões se tornam primordiais: a relação da espiritualidade com as tradições religiosas, com o Sagrado e com o ser humano em sua complexidade enquanto ser. A espiritualidade diz respeito à capacidade humana de entrar em contato com o Sagrado ou é uma dimensão humana, que pode ser desenvolvida inclusive por não religiosos? É necessário diferenciar espiritualidade de religiosidade? Se sim, há especificidades e singularidades na espiritualidade religiosa que a diferenciaria da não religiosa? Devemos falar em espiritualidade ou espiritualidades? O termo espiritualidade ainda é pertinente na contemporaneidade, diante das novas concepções das ciências humanas e sociais? Ainda mais que muitas de suas utilizações e aplicações são eivadas de reducionismos que significam pensá-la fora das realidades humanas.

Diante dessa diversidade de abordagens, o que caberia às Ciências da Religião? Ela possuiria uma perspectiva específica em relação às demais áreas de conhecimento?

As Ciências da Religião, enquanto uma área de conhecimento que aplica aos estudos das religiões as diversas metodologias e epistemologias das ciências, possui características que são importantes na sua abordagem da espiritualidade ou espiritualidades (palavra utilizada no plural quando se pensa em abordar as diversas manifestações e expressões diferenciadas da espiritualidade). Uma delas é seu agnosticismo epistemológico, ou seja, a exigência de certo distanciamento, enquanto alguém que se dedica à pesquisa e ao estudo, das próprias crenças, não as tratando como uma “verdade” diante da qual se deva crer. Embora não seja inviável a confissão de alguma fé ou crença e possa ser útil de alguma maneira, só o será nas Ciências da Religião se a visão distanciada for mantida da parte de quem pesquisa, favorecendo um olhar amplo sobre o fenômeno religioso. A outra característica é sua abordagem inter e transdisciplinar de seus objetos de pesquisa. Com esta abordagem “múltipla”, as Ciências da Religião conseguem construir um olhar singular, metateórico, que se constrói na diversidade de abordagens. E, por fim, a importância do Estudo Comparado das Religiões, no sentido de que se pensa o fenômeno para além de uma expressão única do mesmo. Citando Max Müller, “Quem conhece apenas uma [religião], não conhece nenhuma” (MÜLLER, 2002, p. 113).

Tendo isto posto, o que caracterizaria, então, o olhar das Ciências da Religião sobre a espiritualidade? Ainda mais quando se leva em consideração que em seu meio existem abordagens diversas.

Uma primeira perspectiva a ser levada em consideração diz respeito ao distanciamento necessário das próprias crenças. Neste sentido, a abordagem a respeito da espiritualidade a partir do olhar das Ciências da Religião enfatizará que a mesma não deverá servir para se reafirmar a própria crença, evitando as concepções teológicas que aparecem “disfarçadas” de ciência e que se convencionou chamar de “criptoteologia”.

Uma segunda perspectiva diz respeito à abordagem inter e transdisciplinar. As Ciências da Religião devem, necessariamente, se utilizar de saberes múltiplos. Ou seja, refletir sobre a espiritualidade significaria se aproximar de concepções filosóficas, históricas, teológicas, psicológicas e das Ciências Sociais. Entendo que muitas das abordagens simplistas ou reducionistas que ocorrem hoje em dia pecam, de alguma maneira, na falta de alguma destas visões de outras ciências e saberes. Como falar de espiritualidade sem uma perspectiva histórica de como este conceito se constrói? Como falar dela sem a busca de uma conceituação, nem que seja mínima?

Uma terceira perspectiva diz respeito à necessidade de se abordar a espiritualidade a partir de mais de uma de suas expressões, com a finalidade de que se construa um conhecimento que possa dar conta do fenômeno em uma extensão um pouco mais ampla do que a partir de uma única expressão do mesmo. E alie-se a esta perspectiva o devido cuidado de evitar comparações rápidas, enxergando semelhanças sem a percepção das devidas diferenças inerentes às realidades das espiritualidades, marcadas pelo contexto histórico, cultural, social e religioso diversos. 

E aqui podemos entrever uma quarta perspectiva: o estudo da espiritualidade que se faz sem desvinculá-la do contexto, tanto histórico e filosófico, quanto cultural e religioso. Ela não nasce de uma essência pura que paira sobre a humanidade, mas se realiza sempre em relação com o entorno em que vivem as pessoas e as sociedades. E neste sentido, pode ser compreendida (e o foi na história) de formas distintas, dependendo da região geográfica e da época em que é abordada, assim como é expressa de maneiras diversas, também condicionada pelo contexto em que nasce. E mesmo hoje as compreensões existentes são devedoras do momento presente, seus desafios e valores. Portanto, não são absolutas. São sujeitas a mudanças e reconfigurações futuras.

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Desta sua condição de realidade que se encarna e se incorpora numa história é que a espiritualidade nos permite perceber sua presença nos corpos, nas sexualidades, nas ações políticas, nas relações com o cosmo, nas lutas mais diversas, nas buscas de felicidade, nas estéticas criadas pelos seres humanos e nos encontros com o Sagrado. De igual maneira, também podemos perceber espiritualidades que se relacionam com o consumismo, o materialismo e a violência, no sentido de que seres humanos articulam seus sentidos profundos da existência ao redor destas realidades.

Estas quatro perspectivas é que permitirão um olhar mais característico das Ciências da Religião sobre a espiritualidade, que também pode ter seu enfoque a partir das Subáreas das Ciências da Religião e Teologia (Área 44 da CAPES). Embora ela possa ser abordada a partir de qualquer subárea, atualmente, uma que tem se destacado é a da Ciência da Religião Aplicada, sobretudo em estudos relacionados à relação “espiritualidade e saúde”, em que se encontram boa parte da produção acadêmica. Vale ressaltar que também há abordagens com enfoques na educação, gestão e em perspectivas sócio-políticas-culturais e ecológicas e que nem todas as abordagens em “espiritualidade e saúde” são provenientes das Ciências da Religião.

Diante deste rico e diverso cenário, variadas opções são possíveis. Neste sentido, a perspectiva que defendo envolve a manutenção e utilização explicitada do conceito “espiritualidade”, devido a valiosa história de sua constituição, ampliando-o e matizando-o com as discussões que são provenientes de diversas tradições religiosas e de pensamento, como as ciências humanas, sociais e da saúde. Penso, também, que a espiritualidade deva ser abordada como uma dimensão humana, coerente com a raiz histórica do conceito “espírito” presente nas tradições judaica e greco-latina e em consonância com perspectivas contemporâneas do pensamento acerca do ser humano. Assim sendo, espiritualidade seria uma dimensão humana que se relacionaria com a construção de sentido profundo e a capacidade de conexão consigo mesmo, com o cosmo, com as pessoas e com a transcendência (sendo ela pensada de forma religiosa ou não), podendo as tradições religiosas favorecê-la ou impedi-la em seu desabrochar.


Referências 

MÜLLER, Max. On the Science of Religion, Lecture One (1870). In STONE, J.R. (ed.). The Essential Max Müller: On Language, Mythology and Religion. New York: Palgrave Macmillan, 2002.