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Pipoca com manteiga ou sem manteiga? – A Prática Cinéfila como Cultivo da Qualidade Humana Profunda

Pipoca com manteiga ou sem manteiga? – A Prática Cinéfila como Cultivo da Qualidade Humana Profunda

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Agora eles vivem entre nós. São cidadãos comuns, heróis comuns, que no anonimato contribuem na construção de um mundo melhor.

(Os Incríveis, 2004)

Lembro-me da primeira vez em que fui a um cinema. Era 2004, eu tinha 10 anos quando minha tia convidou-me para assistir a animação Os Incríveis, junto a minha prima mais nova. “Pipoca com manteiga ou sem?” foi a frase que a atendente disse e que ficou marcada em mim. Era um mundo completamente novo. Enquanto eu subia as escadas, com medo de tropeçar naquele piso acarpetado, ansiando por encontrar o meu assento, com o balde de pipoca amanteigada em uma mão e o refrigerante de laranja na outra, olhei para trás pela primeira vez desde que entrei naquela sala, foi quando a vi. Aquela tela era a maior que meus olhos já haviam visto. Sentei-me e, quando as luzes da sala se apagaram e o projetor foi ligado, descobri que era possível viajar sem sair do lugar. Naquele momento a pipoca amanteigada já não importava, pois todo o meu ser havia sido capturado pela magia do cinema. 

Demoraram-se anos até que eu pudesse assistir a exibição de um filme no cinema novamente. Para suprir a falta desse momento, o qual eu ansiava, todos os dias eu pegava o jornal e lia as sinopses dos filmes em cartaz e os comentários dos críticos. Foi quando descobri o mundo da prática cinéfila. Eu lia cada linha imaginando todas as cenas ali descritas. Quando, já na vida adulta, o momento do reencontro chegou, minha rotina foi redefinida. Toda semana eu checava quais seriam os filmes de terror em cartaz – os meus preferidos -, o horário e o valor do ingresso. Assim, todas as terças-feira, às 18 horas, com um balde de pipoca amanteigada em uma mão e o refrigerante de laranja em outra, religiosamente eu subia pelo piso acarpetado para o encontro com aquela tela que já havia capturado-me enquanto criança. Percebi, tempos depois, que a magia não estava apenas no momento de sentar e apreciar a obra exibida, mas em toda a ritualística que a antecedia. As ações de escolher ao filme, comprar o ingresso, enfrentar a fila, entrar na sala e encontrar o lugar eram o começo da experiência da prática cinéfila e, de acordo com Jean-Claude Bernadet, “tudo isso constitui um complexo ritual a que chamamos de cinema e que envolve mil e um elementos diferentes […]” (BERNADET, 1980, p. 9.). E, mais além disso, ler as sinopses, comentar com outras pessoas, especular sobre a história e tantos outros aspectos que perpassam as nuances dessa arte são o que a tornam mágica.

No ano de 2020, entretanto, meu ritual semanal foi interrompido. No contexto da pandemia do covid-19, que exigiu a realização de uma quarentena em prol da saúde pública, alguns estabelecimentos foram fechados, entre eles as igrejas e justamente as salas de cinemas. Cito aqui as igrejas porque o impacto que suas portas fechadas tiveram mostrou-se muito grande, levando a queixas públicas, em reportagens exibidas nos telejornais e pelas redes sociais. Enquanto ateia, o fechamento dessas instituições não afetou em nada minha rotina. Contudo, não poder ir religiosamente às terças-feiras a um cinema e cumprir a ritualística, me fez compreender e, de certa forma, comungar do incômodo sentido por aqueles fiéis. Comecei a pensar em como aquela situação revelava-se tão complexa e parecida. Foi nesse momento em que questionei-me se a prática cinéfila não poderia ser uma forma de cultivo de algo relativo à uma espiritualidade, ainda que não religiosa ou laica – o que o teórico Marià Corbí identifica como cultivo da Qualidade Humana Profunda.

Quando esse termo espiritualidade entra em pauta, logo tem-se a ideia de que ele é relativo a algo exclusivo do campo da religião. Contudo, não caminho por essa estrada, enveredo-me pela construção de Corbí. Sobre esse vocábulo, o teórico o coloca como sendo de propriedade das chamadas Sociedades Estáticas, aquelas que “[…] vivem da mesma forma durante centenas de anos, durante milênios.” (CORBÍ, 1992, p. 130, tradução nossa). Essas sociedades, que eram fixas e rígidas, organizavam-se de forma hierárquica, onde todos os costumes, preceitos e crenças eram imposições daqueles que estavam em um nível mais alto no status quo social. Em grande parte, quem ocupava esse lugar era a Igreja. É, portanto, um termo que remete a aquilo em que nossos antepassados acreditavam, com base nas construções sociais que lhes eram impostas. Assim, a espiritualidade é compreendida como uma forma de submissão.

[…] uma submissão total à revelação, aos mandamentos, preceitos, leis e conselhos sagrados. É a obediência a autoridade divina através de seus messias, seus profetas, seus mensageiros, seus representantes hierárquicos. É a entrega completa a divindade; uma entrega tal que é uma forma de rendimento submisso a Deus. É confiança plena em Deus que, também, é uma forma de submissão sem condições. (CORBÍ, 2020, p. 190, tradução nossa).

Todavia, não fazemos mais parte dessa configuração social. Somos, agora  Sociedades do Conhecimento Contemporâneas que, nos termos de Corbí, são aquelas 

[…] que vivem e prosperam da criação contínua de ciências e tecnologias, em retroalimentação mútua e, mediante elas, da criação de novos produtos e serviços. São sociedades de inovação e mudança, a ritmo progressivamente acelerado. […] Estas sociedades criativas e inovadoras não são sociedades homogêneas, senão que estalam em diversidade. A criatividade gera diversidade; a homogeneidade só se consegue pela imposição e a coerção. (CORBÍ, 2020, p. 27, tradução nossa).

Nessa nova configuração social, que vive da criação constante, as relações estruturam-se em redes, onde todos são interdependentes. A fonte para todo esse movimento de criação, de acordo com Corbí, é a criatividade. Essa, por sua vez, envolve a diversidade e é encontrada nessa relação dos grupos. Por isso, as Sociedades do Conhecimento não podem ser hierárquicas e envolver qualquer traço de submissão. A criatividade, para sua concretude, exige indagação livre e, para tanto, faz-se necessário uma estrutura social que a permita. 

Um filme que muito me emocionou foi O Pequeno Príncipe, do ano de 2015. Em um contexto de despedida, a Raposa contou um segredo a seu novo amigo, homônimo ao título: “só vemos bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.”.  Sendo poética, arrisco-me a afirmar que nem a religião e nem a ciência tocam o coração dos viventes dessas Sociedades do Conhecimento e não são capazes de propiciar a felicidade. Observa-se a busca por algo que preencha-nos, enquanto seres humanos, mas que esteja desvinculada das instituições religiosas. Temos, portanto, a busca por formas de espiritualidades não religiosas. Dado esse contexto, não faz mais sentido utilizar esse vocábulo quando o ponto de referência for as Sociedades do Conhecimento, uma vez que, na teoria de Corbí, esse termo é de propriedade das Sociedades Estáticas. 

Os sujeitos, nessa nova configuração social, estão, portanto, em busca do cultivo da Qualidade Humana Profunda (QHP). Fruto de uma indagação livre, essa envolve o grande silencio de nosso ego, bem como o amor incondicional e desinterssado para que possamos alcancar a felicidade. É interessar-se por algo sem que seja pelo crivo do desejo. Ela não é submissão, é um convite. Não é imposição, é uma escolha com várias possibilidades. E a prática cinéfila pode ser um caminho para esse cultivo.

O cinema carrega consigo uma dupla face onde é, ao mesmo tempo, uma forma de comunicação e uma forma de arte. Rafael José Oliveira Ofemann afirma que a “hibridização entre arte e indústria contribuiu para que diferentes espectadores, igualmente amantes de filmes, se relacionassem de forma distinta com o espetáculo da sala escura”. (OFEMANN, 2017, p. 8). Nesse sentido, a prática cinéfila – também chamada de cinefilia –  envolve, não apenas ir a uma sala de cinema e consumir o filme exibido, mas representa um modo de ser. Essa prática compreende a realização de reflexões sobre o conteúdo assistido, bem como especulação e o debate sobre ele. É mais do que meramente consumir, envolve participar. É deixar-se ser capturado por aquela tela. É, nos termos de Corbí, interessar-se, distanciar-se e silenciar-se, para contemplar essa arte que é o cinema. Detentor de um grande poder, é capaz tornar os sujeitos criadores e criaturas de histórias, de tempos e de personagens, uma vez que ele 

[…] reflecte a realidade, mas, mais do que isso, comunica com o sonho. É o que todos os testemunhos nos asseveram: e são precisamente esses testemunhos que formam o cinema, que nada é sem os espectadores. O cinema não é a realidade, pois que todos no-lo dizem. Se é ilusão a sua irrealidade, é evidente que essa ilusão é, apesar de tudo a sua realidade. (MORIN, 1970, p. 14-15). 

De acordo com Corbí, “sem dúvida, as artes, ainda que tenham consequências práticas para a sensibilidade e, através dela, para uma sobrevivência individual e coletiva de mais qualidade, não têm nenhuma pretensão direta na ação nem na utilidade.” (CORBÍ, 2020, p. 111, tradução nossa). A arte, indo de encontro com o imaginário popular, não é subjetiva. Ela tem uma intencionalidade e essa, apesar de interpretações diferentes pelos observadores, carrega as pretensões de criador. Tem algo específico que ele quer nos passar, mas não em forma de imposição, é um convite, como a QHP. A arte, para ser arte, deve ser inútil, sem uma utilidade direta. Deve ser apreciada sem que isso seja uma forma de alimentar nosso ego. Por isso ela pode ser uma forma de cultivo da QHP. Por mais que seja capaz de proporcionar uma experimentação estética em relação ao que está sendo assistido, o faz sem pretensão, sem que sejamos submisso a ela. Agora que você sabe sobre essa possibilidade de cultivo presente na contemporaneidade, eu pergunto, você prefere sua pipoca com manteiga ou sem?


Referências 

 VEJA TAMBÉM
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BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2000.

CORBÍ, Marià. Proyectar la sociedad, reconvertir la religión. Los nuevos ciudadanos. Barcelona: Herder, 1992. 

CORBÍ, Marià. Proyectos colectivos para sociedades dinámicas. Principios de Epistemología Axiológica. Barcelona: Herder, 2020.

MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Moraes Editores, 1970.

O PEQUENO Príncipe. Direção: Mark Osborne. França: Netflix, 2015. 94 min.

OS INCRÍVEIS. Direção: Brad Bird. Estados Unidos das Américas: Disney+, 2004. 203 min.

OFEMANN, Rafael José Oliveira. CULTURA PARTICIPATIVA NA CIBERCINEFILIA Produção e consumo cinéfilo na internet.  Acesso em: 28 jan. 2022.