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Marielle Franco e a tese da perversidade

Marielle Franco e a tese da perversidade

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Albert O. Hirschman escreveu uma obra chamada A Retórica da Intransigência (São Paulo: Companhia das Letras, 1992), onde trabalha as teses da perversidade, da futilidade e da ameaça. A primeira tese, interesse deste texto, traz como argumento a tentativa [de um movimento] de empurrar a sociedade em determinada direção e que fará com que o mesmo [movimento] se mova, mas na direção contrária.

Durante a Revolução Francesa, por exemplo, igreja e nobreza se inclinavam à intervenção militar e exclamavam: “Massacre, tortura, força! Estes são os vossos direitos do homem”! O resultado é conhecido: a revolução, que teve seu início em julho de 1789, fez com que a monarquia absolutista entrasse em colapso num período de três anos e, em relação à religião, camponeses e grupos políticos radicais, lançaram por terra seus privilégios.

Desde o século XVI, a ideia moral religiosa já não era suficientemente crida para remodelar a natureza humana com a finalidade de garantir a ordem social e o bem-estar econômico. Contudo, ainda no século XVIII, “Providência Divina” (o que para Adam Smith era “Mão Invisível” – termo secularizado – para a economia) e mercado ainda conviviam. O escritor e filósofo Joseph de Maistre (1753-1821) atribuiu as crueldades ocorridas na Revolução Francesa à Providência Divina. Maistre lança mão da tese da perversidade e a assemelha à Providência Divina. Ele afirma:

A multidão… nunca obtém o que deseja […] Pode até notar uma afetação da Providência: os esforços que as pessoas fazem para atingir um certo objetivo são precisamente os meios que a Providência emprega para mantê-lo fora do alcance […] Se se quiser saber o resultado provável da Revolução Francesa, precisar-se-á apenas examinar os pontos sobre os quais todas as facções estão de acordo: todos querem a […] destruição universal do cristianismo e da monarquia; do que se segue que o resultado final de seus esforços não será outro que a exaltação do cristianismo e da monarquia. (MAISTRE apud HIRSCHMAN, 1992, p. 23)

Este é o outro lado da moeda: aquela tese do desencantamento que já fora revista (cf. BERGER, Peter. Os múltiplos altares da modernidade. Petrópolis: Ed. Vozes, 2017) e que não responde mais por causa (e este é um dos pontos) desinstitucionalização da religião. Se objetivo era destruir a influência perversa e dessensibilizadora da religião e o poder opressor da monarquia, o que houve foi exatamente o contrário. As consequências da tese da perversidade são imprevistas.

E o que Marielle tem a ver com isso?

A execução da vereadora (PSOL) de 38 anos nesta quarta (14/03/18), que fora eleita por mais de 46 mil votos na cidade do Rio de Janeiro, que defendia a causa de mulheres negras, militante dos direitos humanos (num país onde muitos religiosos, “nobreza” e classe média, reproduzem a frase “Massacre, tortura, força! Estes são os vossos direitos do homem”!), socióloga e mestra em Administração Pública, e, desde o dia 28 de fevereiro, relatora da comissão que investigava a intervenção militar no Rio, mãe de uma jovem de 19 anos, possui várias hipóteses.

O que, neste espaço torna-se importante sublinhar é que a tese da perversidade está em pauta, tendo em vista que, no desejo de tentarem diminuir ou até calar a voz de uma mulher que lutava por direitos de oprimidos e da “ralé” (termo usado pelo sociólogo Jessé Souza em seu livro recente A Elite do Atraso [ed. LeYa, 2017] para descrever os novos escravos brasileiros), ocorreu justamente o contrário. Sua “presença” se multiplicou: na cidade do Rio (Cinelândia, em diferentes pontos do centro, Alerj); em Campos dos Goytacazes (em frente à UFF); em Petrópolis (em frente à Câmara de Vereadores); em São Paulo (Av. Paulista, em frente ao Masp); em Campinas (IFCH – Unicamp; Largo do Rosário); Piracicaba (Terminal Central de Integração); Ribeirão Preto (Esplanada do Theatro Pedro II); em Santos (Praça dos Andradas); em São Carlos (Praça do Mercado); em Sorocaba (no cruzamento das ruas Dr. Braguinha e Barão do Rio Branco); em Aracaju (em frente à Câmara Municipal); em Maceió (em frente à Câmara Municipal); em Manaus (na Lagoa de São Sebastião); em Salvador (ato realizado na UFBA); em Brasília (na praça do Zumbi dos Palmares); em Vitória (na praça Costa Pereira); em Cuiabá (na Praça da República); no centro de Campo Grande; em Belo Horizonte (na Praça da Estação); em Belém do Pará (na Praça de São Brás); no centro de Curitiba; em Pernambuco (reuniram-se em frente à Câmara Municipal do Recife, na Boa Vista, centro); no Piauí (Memorial Esperança Garcia); em Natal (em frente à sede do PSOL e Praça Cívica); em Porto Alegre (na Esquina Democrática); no centro de Florianópolis; em Portugal (Lisboa); na Argentina (Buenos Aires); nos EUA (Nova York e Washington); no Uruguai (Montevidéu); na França (Paris); no Parlamento Europeu; no Chile (Santiago).

Marielle Franco, presente!

Assassinos e mandantes erraram ao acreditarem que poderiam calar a sua voz. A história de Marielle será beatificada e servirá de impulso para, onde seus pares transitarem, enriquecer ainda mais o discurso. Se por algum momento seus algozes acharam que os tiros poderiam reprimir ou sepultar a força política – quiçá profética – que dava fôlego à coragem denunciadora da representante do povo esquecido de Acari, testemunharão as consequências de suas estratégias equivocadas. Foram 9 tiros pela culatra! Como afirma um dos muitos cartazes levantados nas avenidas brasileiras: “Ela é porque nós somos”. Os detentores do terror, cujos tentáculos penetram invisivelmente os importantes setores da condução e repressão do nosso país, involuntariamente, polifonizaram Marielle e suas lutas.

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O sangue de Marielle e Anderson, seu motorista também executado, representa milhares de esquecidos(as) do país, os(as) quais perdem o direito de vida ou dignidade por causa de sua cor, gênero, orientação sexual, etnia, tradição religiosa, pertencimento partidário, sobrenome ou condição social. No brasil, pobre, negro, mulher, homossexual, crianças e todos(as) alidos(as) e eles(as) e suas causas são matáveis! E o Estado não se furta em eliminá-los(as) para tornar a nação um lugar habitável para os donos das terras, dos bois, das balas, da bíblia que é usada por muitos para legitimar injustiças, da economia, da má política, dos projetos imobiliários, das empresas licitadoras, das milícias, dos amigos da direita meritocrática!

Não há mais espaço para negociação!

A morte de Marielle é denúncia, eucaristia, símbolo de todos(as) crucificados(as) pelas forças interessadas em silenciar e esconder o clamor dos(as) que sofrem esquecidos(as) nos cantos indesejados da nação. Seu corpo é transubstanciação da violência, do extermínio dos(as) vulneráveis e da ausência de direitos. Seu sacrifício é libação sagrada contra um Estado que mata para proteger e expandir o poder de alguns poucos privilegiados.

Marielle Franco, presente!

Por fim, após refletirmos sobre sua voz, sobre a voz do Estado, resta saber se, de fato, “todos os tiros saem pela culatra” (p. 19) e as vozes que ecoaram em diferentes partes do país e do mundo, ajudarão a reverberar uma nova sociedade ou… precisaremos, infelizmente, escrever outro texto para abordarmos sobre a tese da futilidade.

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