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Brasilidades religiosas: notas da cultura religiosa nacional

Brasilidades religiosas: notas da cultura religiosa nacional

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A cultura religiosa nacional, em suas variadas expressões e singulares características, compõe uma típica brasilidade religiosa. No livro O que faz o brasil, Brasil? (1986) do antropólogo Roberto DaMatta, encontramos uma tentativa de interpretação da “alma” da cultura brasileira a partir da elucidação do que, para o autor, constituem os principais aspectos da identidade nacional. Entre outros temas (como a dicotomia entre casa e rua, as relações raciais, carnaval, etc.), DaMatta se coloca a questão dos “Caminhos para Deus”, afirmando, desde o título do capítulo, que a religiosidade brasileira é culturalmente marcada pela pluralidade de percursos e diversidade de modalidades com a qual os indivíduos realizam sua experiência do sagrado.

Para ele, a cultura brasileira se constrói e estrutura em torno de “referências espaciais” nas quais os indivíduos vivem e atribuem sentido a existência. Dentre estas referências, está o que o autor chama de “espaços do outro mundo”, marcado pela presença concreta das instituições religiosas e na crença de seres transcendentes que habitam este “outro mundo” do qual, há uma expectativa que nele se vá “morar” um dia. A religião se apresentaria como uma forma de linguagem particular dos homens com estes “seres” de “outro mundo” que se manifesta em meios formalizados e suplicantes. Conforme destaca o antropólogo, este espaço religioso é regulado por uma concepção vertical e hierarquizada entre “céu e terra”. No “céu” encontra-se o domínio dos deuses, em baixo na “terra”, o mundo humano. Os meios pelos quais se dá a ligação entre estes “dois mundos” é justamente as orações (preces, rezas), as festividades religiosas e o canto coletivo.

Estas formas de comunicação com o sobrenatural seguiriam uma “lógica de gradação dominante” na religiosidade brasileira, onde há a concepção de que existem rezas mais “fortes” ou mais “fracas” que outras. Dessa forma, DaMatta entende que “as formas que implicam o envolvimento da maioria dos sentidos seriam provavelmente mais fortes e irresistíveis aos santos, deuses e espíritos do que as modalidades em que apenas um sentido está envolvido” (grifo nosso). Ou seja, predomina na religiosidade brasileira uma tendência a modos de experimentação religiosa mediadas por múltiplos sentidos em detrimento daquelas formas que restringem a apenas um sentido específico, como por exemplo, o elemento mais subjetivo da doutrina religiosa, que envolve o assentimento intelectual por parte do fiel.

Segundo, muito embora a comunicação com o mundo transcendente se dê a partir de um elo fortemente pessoal, o comunitarismo prevalece sobre as experiências individuais isoladas, realocando o sujeito à uma coletividade de crença. Também, a religiosidade brasileira é fortemente marcada pela ideia da troca, onde as “súplicas acompanhadas de objetos, na forma de promessas, oferendas e sacrifícios, são naturalmente mais fortes que um simples pedido verbal” e apontam para um “ato de cometimento muito mais denso e dramático”. Nesta lógica, “a promessa é um pacto que obriga os dois lados a alguma ação positiva no sentido de resolver o problema apresentado”. Muito embora a prática da promessa comum ao catolicismo (em suas variadas expressões, especialmente o popular) se distinga no caso do protestantismo de tipo pentecostal, a ideia de voto ou de uma obediência religiosa entendida como sacrificial no pentecostalismo, trabalha com a mesma lógica do sistema de trocas, já trabalhada pelo antropólogo Marcel Mauss.

Para DaMatta, “a variedade de experiências religiosas brasileiras é, assim, ao mesmo tempo, ampla e limitada”. Por um lado, é ampla porque a realidade brasileira é formada por uma constelação de tradições e denominações religiosas diversas, como o Catolicismo Romano, os Protestantismos, as Religiões Orientais, as Afro-Brasileiras, Espiritismos, etc. Por outro, é limitada porque entre estas expressões existe um “ponto focal” que atravessa a ambas que é a “ideia de relação e a possibilidade de comunicação” entre os homens e estes “seres transcendentes” (deuses, espíritos, ancestrais). Como destaca o autor “em todas as formas de religiosidade brasileiras, há uma enorme e densa ênfase na relação entre este mundo e o outro, de modo que a domesticação da morte e do tempo é elemento fundamental em todas essas variedades ou jeitos de se chegar a Deus”.

A comunicação entre o indivíduo e os seres que habitam este “outro mundo” se dá através de um forte “elo pessoal”. A relação com os espíritos, santos, orixás, e antepassados é descrita em termos de “intimidade” onde o sujeito religioso não é apenas um devoto, mas também, um veículo no qual estes seres se manifestam (sendo cavalos dos santos dos orixás no candomblé; na mediunidade dos espíritos desencarnados no espiritismo; no “estar cheio do espírito” em êxtase no pentecostalismo). Como afirma, esse elemento de pessoalidade da experiência com o “divino” é marcante na cultura religiosa brasileira e que “a relação pode ter forma diferenciada, mas a sua lógica estrutural é a mesma. Em todos os casos, a relação existe e é pessoal, isto é, fundada na simpatia e na lealdade dos representantes deste mundo e do outro”. O “milagre” é justamente entendido um dos grandes exemplos dessa relação mais pessoal que envolve os indivíduos e os seres divinos.

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No Brasil, as entidades sobrenaturais – de modo análogo à figura dos pais, padrinhos e patrões – servem para oferecer proteção ao fiel, mesmo que, muitas vezes, essas forças espirituais pertençam a tradições religiosas divergentes. Também, a brasilidade religiosa em vez de opor “religião popular” à “religião oficial”, se intercalam como “vertentes de um mesmo rio” fazendo valer formas por vezes distintas, mas complementares, de se chegar a Deus.  Enquanto as religiosidades populares expressam uma comunicação mais “sensível, concreta e dramática”, a religião erudita tende mais uma “comunicação disciplinada”, “limpa e distante” das divindades.

Um último aspecto da cultura religiosa brasileira que merece destaque, diz respeito a uma tendência ao sincretismo e a bricolagem das crenças. DaMatta afirma que “se o mundo real da modernidade e do politicamente correto exige um comportamento coerente e uma conduta marcada pela exclusividade (não posso ter dois sexos, nem duas mulheres, nem duas cidadanias, nem dois partidos políticos ao mesmo tempo…), no caminho para Deus, e na relações com o outro mundo, posso juntar muita coisa”. Mesmo que entre si as tradições religiosas possam ser “aparentemente diferentes”, para o brasileiro, “essas experiências religiosas são todas complementares entre si, nunca mutuamente excludentes”. Ainda para o autor, “o que pode parecer singular no caso brasileiro, então, é que cada uma dessas formas de religiosidade seja suplementar às outras, mantendo com elas uma relação de plena complementaridade”. Dessa forma, pode-se afirmar que um traço característico dessa brasilidade religiosa é a disposição a justaposição das crenças sem que isso implique diretamente uma contradição ou conflito por parte do indivíduo brasileiro.

As brasilidades religiosas são um dos aspectos culturais que fazem do Brasil, Brasil. As aparentes contradições e antagonismos que marcam a relação com as entidades sobrenaturais e a própria sociedade, formam o que há de mais específico e particular em matéria de religião nestas terras tupiniquins. Conhecer como estes sagrados se expressam na realidade brasileira é, de alguma forma, aproximar-se também da compreensão da(s) identidade(s) do país. E nesse esforço, DaMatta é sempre uma leitura e referência fundamental.