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Porque o menino Jesus pode ser um bebê drag queen

Porque o menino Jesus pode ser um bebê drag queen

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No período de final de ano e, especialmente, nos dias que antecedem o Natal, circulam inúmeras imagens e representações de quem, diz-se, é o motivo das comemorações. Tem Jesus negro, indígena, mulher, pobre, glorioso, trabalhador. Há discussões e debates sobre a precisão da data do nascimento em relação às comemorações e há controvérsias sobre qual seria a representação mais próxima da realidade de um homem que nasceu e viveu há mais de dois mil anos num contexto geográfico específico. A imagem de um homem branco, quase-loiro e de olhos azuis já foi superada como parte do processo de embranquecimento e europeização das tradições religiosas que o reivindicam como ponto de inflexão na história de sua fé. Aqui e ali o Jesus branco, quase-loiro e de olhos azuis e suas variantes mais ou menos ocidentalizadas ainda aparece como resquício de uma memória familiar e, talvez, confortante para algumas pessoas.

Além dessas imagens mais ou menos aceitas – não sem polêmicas e discussões fervorosas e até perseguição e cancelamento digital – circulam outras, ainda menos ortodoxas. Jesus gay, Jesus travesti, Jesus prostituta (ou na companhia delas). Jesus irreverente, encrenqueiro, camarada, boa-onda. Jesus nas cores e nas bandeiras de quem, independente da adesão às formas de religião que se referenciam nele, assume, mesmo que apenas por despeito e provocação, essa figura do imaginário religioso como forma de expressar suas ideias, suas críticas, seus desejos e suas aflições. Como símbolo (religioso ou não), as representações de Jesus escapam a qualquer tentativa de normatização institucional e dogmática, mesmo entre seus seguidores e suas seguidoras mais in/fieis.

Todas essas e muitas outras representações fazem parte da tradição do Cristianismo e são refletidas em diversas teologias elaboradas em diferentes períodos históricos e com distintos contextos e perspectivas. Algumas delas remetem às mais recentes reflexões no âmbito das teologias da libertação (negras, indígenas, feministas, camponesas, gays/lésbicas/queer). A identidade e a identificação de Jesus com experiências e vivências diversas revelam a sua abertura enquanto símbolo religioso e, talvez, a sua relevância, mesmo quando ele próprio e as correntes e grupos religiosos que o afirmam como centro de suas crenças e ações o sequestram para a promoção de valores e visões de mundo questionáveis por predatórias.

Os estudos históricos e exegéticos que buscam uma maior aproximação à imagem real dessa personagem que circulou no mundo há dois milênios ajudam a elucidar e, em alguns casos, reforçam determinadas representações. Ainda assim, as discussões em torno do Jesus histórico (em termos estéticos, psicológicos, políticos e religiosos), por mais importante que sejam, não são suficientes para esgotar as possibilidades de apropriação e representação – e quem poderia jogar a primeira pedra? A diferenciação entre o Jesus histórico (supostamente mais fixo e localizável) e o Cristo da fé (supostamente mais aberto a significações plurais) parece uma saída inglória quando o verbo se faz carne e habita entre nós. Nem um, nem outro, os dois e muito mais. Jesus é multidão.

Uma das imagens que circula é do menino Jesus travestido com exageros imperiais que refletem a perspectiva de Jesus Rei ou Príncipe (da paz?) e podem ser facilmente explicadas em termos históricos e político-ideológicos. Embora esse tipo de representação na religiosidade e na cultura popular possa representar zelo e devoção (com aquilo que temos de melhor), não é exagero reconhecer os traços colonialistas nessas representações. Roupas e ornamentos luxuosos, apesar de facilmente serem reconhecidas como não coerentes com “o que realmente aconteceu”, podem assumir na fé do povo a reverência e a esperança de um mundo de abundância, bem como a reafirmação da desigualdade social de classe e estamento imposta pelas instituições reguladoras do status quo e da ortodoxia religiosa.

A maior heresia, no entanto, é apropriar essa representação e afirmar o menino Jesus como drag queen. A reflexão teórica sobre o fenômeno (vivo e multifacetado) das drag queens pelos estudos de diversidade sexual e de gênero (Butler, 1999; Louro, 2004) – nas mais diversas áreas do conhecimento – já seria o suficiente para evidenciar o borramento das fronteiras nas referidas imagens. As transgressões de gênero, nesse caso, poderiam reforçar o caráter decolonial de tal apropriação linguística e representativa, questionando os efeitos nefastos dos processos colonizadores (materiais e simbólicos). Além disso, a reivindicação do seu caráter parodístico poderia afirmar-se como subversão desses próprios princípios e seus mecanismos de efetivação ao deslocar a figura e a própria devoção a ela para o campo da indecência, da desordem e da religião como elemento de reordenamento do mundo e das relações sob outros parâmetros.

O fato de ser um menino (ou menina?), um bebê, uma criança, talvez seja um fator de complicação nessa apropriação para as teorias modernas sobre a infância. Não é à toa que os maiores entraves e as maiores batalhas em relação às discussões de gênero se dão no âmbito dos processos educativos infantis (seja na educação formal no Ensino Fundamental ou nas pedagogias operacionalizadas no contexto familiar e religioso). O pânico moral de “ensinar” às crianças coisas que não se deve ou de impor-lhes determinados padrões despadronizados se revela de um extremo ao outro, das opiniões corriqueiras às teorias comportamentais. As crianças (como os anjos) não têm sexo, gênero e sexualidade. Uma infância inventada, mas muito operante.

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Os estudos sobre diversidade sexual e de gênero discutem muito como determinados padrões são constituídos e formados justamente na infância (cores, roupas, cuidados, brinquedos, brincadeiras). Os estudos sobre crianças viadas (Machado, 2020) ou infâncias dissidentes (Rodrigues, 2020) são mais recentes e invisibilizados. As histórias e as vivências de sexo, gênero e sexualidade na infância continuam sendo tabu e a ideia de mexer com a (santa) infância (de Jesus) impensável.

Não há um bebê na referida imagem. Há uma representação de bebê. Uma representação altamente marcada por questões de gênero que lembram, em muito, os exageros dissidentes de drag queens que parodiam os próprios padrões de gênero, esticando-os e explodindo-os. O menino Jesus drag queen, assim, faz memória de nossas infâncias viadas e dissidentes, acolhe-nos num desejo compartilhado por uma vida na qual podemos ser o que quisermos e, quem sabe, renova a fé de quem é capaz de ver e encontrar o sagrado nele (ou nela?).


Referências

RODRIGUES, Alexsando (org.). Crianças em dissidências: Narrativas desobedientes da infância. Editor Devires, 2020.
BUTLER, Judith. Gender trouble. New York: Routledge, 1999.
LOURO, Guacira. Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
MACHADO, Ícaro. Criança viada. Publicação independente, 2020.