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O leite derramado: política e LGBTfobia religiosa

O leite derramado: política e LGBTfobia religiosa

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O Brasil foi sacudido (contem ironia) pela notícia de que o governador do Rio Grande do Sul – Eduardo Leite – saiu do armário, assumiu que é gay e que tem orgulho disso. A informação não era exatamente um segredo, já tendo sido usada em campanhas eleitorais para tentar “difamar” o então candidato e evitar que fosse eleito. Afinal, um gay governador (ou um governador gay) sempre pode ser uma ameaça à família e à sociedade (mais ironia).Mas agora não é mais segredo e houve uma “confissão” pública.

Relembro que em 2001 essa foi uma questão definitiva para que eu não fosse aceito pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) para a realização do Período Prático de Habilitação ao Ministério (PPHM) e posterior ordenação como pastor dessa igreja. Na conversa constrangedora que tive com o então Pastor Presidente da Igreja, Huberto Kircheim, uma das perguntas que ele me fez foi se eu “me confessava publicamente como gay”. Naquele momento, por conta de uma estratégia articulada com colegas, eu respondi “publicamente não”. Não adiantou. O resumo da história – que pode soar meio bizarra vinte anos depois – é que nunca cheguei a ser ordenado.

A questão “pública” foi – e ainda é – determinante quando se trata de orientação sexual. O ato de “sair do armário” – como é chamado o processo de assumir publicamente (nem que seja para uma única pessoa) – uma orientação sexual diferente da heterossexualidade normativa foi e ainda é visto como um ato político de enfrentamento do que hoje chamamos de heteronormatividade. A afirmação do orgulho (LGBTQIA+) é uma forma de denúncia e resistência a esse sistema e seus processos correlacionados. Ela acontece não apenas uma vez, pois em geral precisamos sair do armário durante a vida toda sempre de novo, e não acontece da mesma forma para todas as pessoas. Diversas questões tornam necessário e/ou possível que uma pessoa LGBTQIA+ dê esse passo – e sinta que precisa faze-lo.

No caso do referido governador, ao que tudo indica, há motivações políticas específicas que justifiquem que ele o faça nesse momento e da forma como fez (em um programa de repercussão nacional). Presumivelmente há um cálculo político que pressupõe que, dessa forma e nesse momento, esse ato traz mais benefícios do que prejuízos a sua vida, sua imagem e sua carreira política. Não são poucas as críticas ao seu gesto considerando o apoio a um candidato e a um presidente abertamente LGBTfóbico, seu pouco (ou nenhum) envolvimento e apoio às pautas da população e dos movimentos LGBTQIA+ e sua filiação e atuação em um partido político cuja ideologia se alinha ao capitalismo neoliberal.

Ademais, não há como negar o lugar de privilégio a partir do qual o governador se assume. É um homem branco cisgênero e que assume o discurso higiênico da discrição e do “não faz diferença” – é um “governador que é gay e não um gay governador” (reviro os olhos e respiro fundo). O discurso e a imagem do “gay limpinho e discreto”, que não causa escândalo e não dá pinta (em público), contrasta com o apagamento, também indicado por muitas pessoas, de uma colega sua, Fátima Bezerra, governadora de um estado do nordeste, negra e lésbica filiada e atuante num partido considerado de esquerda. Agora pense num “beijo gay” do governador e, quem sabe, um casamento na Catedral Metropolitana de Porto Alegre com recepção no Palácio Piratini (olhos arregalados).

A afirmação do “não faz diferença” contradiz o próprio ato de sair do armário como estratégia e ferramenta política. A gente sai do armário justamente porque faz diferença – e não há processo de naturalização da “homossexualidade” que mudará isso. E aí está um dado que fez e faz com que alguns e algumas de nós que fiquemos um pouco exitosos e exitosas em comentar a “revelação” e a sua repercussão. Pessoalmente, apesar de entender todas as críticas e posicionamentos que apontam para diferentes facetas do gesto, me interessa mais o ponto em que religião e política se encontram e o efeito que a saída do armário pode ter nesse contexto.

Fala-se muito de um conservadorismo religioso no Brasil e sua força no campo político. Também já é bastante explorada a relação entre essa realidade e seu impacto negativo no campo dos direitos humanos em geral e dos direitos sexuais e reprodutivos em particular. Especificamente o tema da “homossexualidade” e das “questões de gênero” (vulgo “ideologia de gênero”) continua sendo assunto de conflito no interior das tradições religiosas (especialmente no âmbito do Cristianismo) que transborda para o âmbito público na forma de pânico moral nos diversos processos políticos (eleições incluídas). Para as lideranças e os grupos políticos fascistas e de direita é sempre bom ter um “kit gay” e um “em defesa da vida” na manga para acionar contra seus adversários políticos – e o elemento religioso vai subentendido.

Na minha própria igreja (a IECLB) esses assuntos (junto com comunismo, militância e outros dispositivos de pânico) continuam atuando e tendo seus efeitos. Muitas das pessoas que, aparentemente em contradição, “militam contra” essas questões, provavelmente votaram no governador do Rio Grande do Sul e votariam nele caso ele chegasse a ser candidato à presidência. A imagem do “gay limpinho e discreto” seguramente ajudaria a consolar suas almas em conflito, afinal “ele é como nós”, só que não. Ou então diriam que isso é coisa de política e não tem nada a ver com a igreja (que, aliás, já é o seu argumento em situações em que questões políticas e religiosas conflitam). Na igreja seguiriam “militando” contra o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero e na política “fechariam um olho” para que a sua visão de mundo (e os seus privilégios) continuasse inalterada. Já está comprovado que a ginástica hermenêutica desses grupos é de uma criatividade (ou seria malignidade) espantosa.

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Pra ser bem clichê, acredito sim que a saída do armário (confissão pública) do governador do Rio Grande do Sul possa ter um impacto positivo no campo político e religioso, abrindo possibilidades de diálogo e para que mais pessoas se sintam confortáveis e ocupem espaços nesses lugares. As coisas são sempre mais complexas do que parecem à primeira vista. Para além das vozes que gritam e militam contra o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero, acredito que na vida das pessoas e nas comunidades religiosas podem ocorrer fissuras e mudanças na tentativa de reconciliar posicionamentos políticos e questões de fé.

De todas as maneiras, em muitos lugares e para muitas pessoas o fato de um governador do Rio Grande do Sul ter dito publicamente que é gay provocou abalos (ou desterritorializações) que exigirão novos posicionamentos (reterritorizações), inclusive do ponto de vista religioso. Se ele se confirmará como uma “terceira via” no campo político brasileiro é difícil dizer e inúmeras pesquisas já devem estar sendo feitas para ver o “saldo” desse gesto. Se ele terá chances de se eleger num contexto marcado por uma religiosidade conservadora e barulhenta e se tornar o primeiro presidente gay (ou gay presidente) do Brasil também é difícil saber. Afinal, é bem sabido que a LGBTfobia religiosa está bem menos relacionada com fé e teologia e muito mais próxima de um pragmatismo político colonial e imperialista, muitas vezes disfarçado de religião. Se esse gesto provocará mudanças no campo religioso é ainda mais difícil de prever, já que aí opera uma outra “terceira via” que no Cristianismo se chama de Espírito Santo – e ele (ou ela) sopra onde quer.

O leite está derramado. Chorar sobre ele não é a única opção. Só a luta salva.