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Direitos dos deuses nem sempre entendem os direitos dos humanos

Direitos dos deuses nem sempre entendem os direitos dos humanos

© Jörg Lohrer

O deus que responder por fogo será deus”
“… deus acima de todos”

Edgar Morin, um intelectual francês, escreveu O Método, uma obra com seis volumes onde aborda sistematicamente a complexidade da vida humana. Em um deles, destaca que a humanidade (sociosfera) se alimenta da noosfera (mundo das ideias e dos conceitos) e a noosfera também se alimenta da sociosfera. No campo religioso, o conceito “deus” é alimentado pela sociedade. O perigo é quando essas ideias/conceitos se transformam “seres independentes” e acabam manipulando seus súditos. Em outras palavras: o conceito de deus se transforma em deus de verdade e passa a ter poderes especiais, alimentando-se, inclusive, daqueles que verdadeiramente existem.

Ilustro. O primeiro livro dos Reis na Bíblia, capítulo 18, conta parte da aventura profética de Elias. Trata-se de um embate entre aqueles que se “dobraram a Baal” e o solitário e depressivo Elias. O monte Carmelo é o cenário para se discutir o deus verdadeiro. É sabido que a tradição elenca alguns tipos proféticos. Neste caso, dois deles: a classe extática e a autônoma (ou seja, que não está vinculada à corte ou ao templo – no sentido de ser um representante ou funcionário dele).

A classe extática é formada por aqueles que usam do expediente do êxtase para o ritual religioso. No texto em questão, são os que se adequaram ao padrão do deus estranho que prometia a fartura do campo. Por outro lado, o deus que era conhecido como deus do deserto, era senhor de Elias.

Os montes eram lugares sagrados, de revelação, de sacrifícios e oferendas. Os fiéis que vencessem batalhas sobre eles poderiam consagrá-lo ao seu deus. O Carmelo era conhecido como um jardim fértil.

A narrativa apresenta o desafio: após a entrega das ofertas e sacrifícios, o deus que respondesse consumindo com fogo seria o deus crido como verdadeiro. Enquanto os profetas extáticos dançavam, se lancetavam e gritavam, Elias zombava do silêncio de Baal. Nada acontecera.

Chega a vez de Elias. Ele faz uma oração objetiva. Deus responde com fogo consumindo tudo o que estava sobre o altar. Elias, portanto, mata à espada mais de 400 profetas que estavam no monte Carmelo como forma de demonstração de juízo de deus sobre os falsos profetas com o seu falso deus.

Ponto.

Silêncio.

Penso aqui com meus botões sobre o processo religioso de nossos dias. Esses deuses capazes de engolir não apenas as oferendas, como também os outros ofertantes em montes entupidos de batalhas ditas sagradas. Êxtases, legitimações bíblicas para violência, extermínio do outro em nome da unicidade divina. Não pretendo analisar exegeticamente o texto bíblico, mas dá para compreender que esses espaços de lutas se reproduzem (nem sempre) simbolicamente no cenário religioso no Brasil. E não dá para ocultar o processo político envolvido nesse sistema: um país onde se pretende ter “deus sobre todos” é, no mínimo, um discurso de batalha sobre montes, para ver quem domina, quem possui a verdade, quem tem o poder nas mãos para aniquilar o outro. Gente que crê no “deus sobre todos” é gente que está dominada pela ideia de deus, é comida por deus, é usada e abusada por deus. Não compreende que a noosfera possui também o processo de retroalimentação.

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Mas deve-se estar do lado de quem? De Baal ou de Yahweh?

A resposta é simples: se estar ao lado de Baal é buscar o êxtase para promoção do ritual e da barganha religiosa, não se deve buscar Baal. Se estar com Yahweh é ter de matar os que servem outros deuses, não se deve buscar Yahweh.

Enquanto deus estiver acima de todos, os montes e as batalhas existirão. Direitos dos deuses nem sempre (para ser generoso) entendem os direitos dos humanos.

O presidente eleito já disse que o país é cristão e se deve governar para a maioria. Já ensaiou metralhar petistas e abusou de frases homofóbicas, machistas, misóginas, racistas. Qualquer monoteísta desavisado poderia dizer que este senhor está amparado pelas escrituras sagradas. Contudo, a proposta para nossa breve reflexão é afirmar que a vida não pode ser mensurada pela ideia do deus do outro. Teologia pública, governo federal, líder religioso, político… que desprezam a pluralidade, estão à beira de tomarem a espada e sacrificarem em nome do “deus verdadeiro” todos os seus oponentes. E notem: enquanto isso, os deuses falsos continuam constituindo novos fiéis para o sacrifício.