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Dimensões do espaço religioso

Dimensões do espaço religioso

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O espaço sagrado é um dos elementos mais evidentes da religião. Seja por sua aparente expressão visual, contemplativa e quase sempre material; ou por sua inerente dimensão existencial e por vezes, inclusive, devocional. A espacialidade da experiência religiosa pode assumir diferentes contornos em diferentes contextos e circunstâncias. Por conta disto, o espaço sagrado em algumas tradições pode assumir características físico-materiais; enquanto em outras, ser inteiramente percebido e compreendido em níveis puramente abstratos.

O presente texto tem como objetivo apresentar algumas das formas de como o espaço sagrado tem sido abordado pelas ciências sociais, humanas e da religião. Cada abordagem emerge a partir de características próprias da manifestação religiosa espacial; como é percebida, vista e vivida por aqueles que a experienciam. Enfatizamos que as caracterizações apontadas aqui são apenas algumas das muitas possíveis, visto que o mesmo fenômeno pode ser tratado por diferentes vieses e a partir de distintas intencionalidades.

Rafael Almeida Teixeira

Embora sejam bem diversas as alternativas recorrentes, podemos agrupá-las em três perspectivas: i) o espaço sagrado visto como espaço da religião; ii) o espaço sagrado como resultado do espaço do religioso; e, iii) o espaço sagrado entendido enquanto categoria de análise. Naturalmente esta classificação, como um típico artifício heurístico, em muitos momentos apresenta fronteiras tênues, interconexões, sobreposições ou mesmo equivalência; porém, ainda assim válido para percebermos as mais prementes nuances do fenômeno.

O ESPAÇO SAGRADO COMO ESPAÇO DA RELIGIÃO

Talvez, a maneira mais comum de se perceber o espaço sagrado seja a partir das determinações institucionais, principalmente através das suas representações materiais. É intuitivo apontar uma igreja, mesquita, terreiro, sinagoga, templo, etc. como um apropriado espaço sagrado. São estas construções e manifestações físicas que carregam a legitimidade institucional de suas tradições, por isso tão presentes ao nosso redor e em nosso imaginário.

Na grande maioria das vezes, tais espacialidades são expressões contundentes da presença institucional no meio social: são espaços representantes de uma religião institucionalizada que possui (mais ou menos) permeabilidade social. Isto quer dizer que para muitos a organização espacial da experiência religiosa é canalizada pelos ditames de uma instituição, de uma tradição religiosa. E dessa maneira o espaço sagrado acaba por ser aquilo que a instituição designa que seja.

A partir desta perspectiva é que muitos estudos do fenômeno religioso têm se embasado. Nesta linha, o espaço sagrado passa a ser compreendido como o espaço da religião; como uma extensão espacial, quase que obrigatória, das ações institucionais. Além de o espaço sagrado ser visualizado, quase que exclusivamente, como uma expressão material, ele é também delimitado por uma tradição social. Nesse sentido, todo espaço ocupado por uma religião passa a ser pontuado, para muitos teóricos, como espaço sagrado ou como parte desse.

Um bom exemplo desta abordagem pode ser visto nos trabalhos de Sopher (1967) e Park (1994). Neles, o espaço sagrado se apresenta como uma força institucional. Para ambos, a tonalidade sacra configura uma demarcação territorial abalizada pela religião formal. Assim, o espaço só é sagrado porque foi ordenado como tal por uma instituição religiosa. Uma espécie de organização institucional do espaço. É como se o espaço sagrado fosse o resultado dos recortes espaciais que a religião produz no contexto social; por isso mesmo um espaço da religião.

O ESPAÇO SAGRADO COMO ESPAÇO DO RELIGIOSO

Embora majoritariamente o espaço sagrado transpareça como representação física de uma ordem institucional, ele também pode se apresentar a partir de outros prismas. Para muitos religiosos o que define um espaço como sagrado não é, necessariamente, os ditames da religião institucionalizada; mas sim aquelas dinâmicas íntimas, espirituais, míticas, subjetivas, e que por isso, profundamente religiosas, que o sujeito experiencia.

A partir desta compreensão, o espaço sagrado pode ser visto como palco da ação religiosa individual ou como espacialidade religiosa coletiva. Note-se que a experiência religiosa subjetiva, ou mesmo intersubjetiva, e não interpelada por uma instituição, é o substrato deste espaço sagrado. Neste caso a ênfase não recai sobre a religião como instituição, mas sobre a dinâmica cultural religiosa desenvolvida pelos indivíduos, adeptos ou não de uma tradição religiosa.

Nesse sentido, alguns autores, como Jackson e Henrie (1983) e Stump (2008), vão falar de um espaço sagrado que precede e supera as próprias instituições. São espacialidades geradas a partir de experiências individuais, conectadas ou não com alguma religião institucionalizada. E por surgirem das experiências subjetivas individuais ou de grupo, o espectro do sagrado se torna também distinto e variado. O próprio Stump vai elencar diferentes possibilidades para este tipo de espaço sagrado, como: cosmológico, teocêntrico, hierofânico, ritual, histórico, etc. São espaços da experiência religiosa, espaços que emergem e se cristalizam a partir do sentir religioso; por isso define-se bem como espaço do religioso.

O ESPAÇO SAGRADO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE

As duas abordagens anteriores se destinam mais a um processo descritivo e analítico das espacialidades do fenômeno religioso. Não se estruturam filosoficamente ou se fundam epistemologicamente a fim de construir uma abordagem distintamente compreensiva. Com isso, queremos dizer que tratar o espaço sagrado, como espaço da religião ou do religioso, é em última análise uma forma de descrição pura e simples do fenômeno – que por sinal é muito válida e necessária, porém evidentemente limitante. Uma alternativa, quiçá mais abrangente e potencialmente mais produtiva, se daria ao se considerar o espaço sagrado não como mero descritor, mas sim como uma ferramenta intelectual, pensada e arquitetada para auxiliar na compreensão do fenômeno religioso.

Nesse sentido, estabelecer conceitualmente o que é o espaço, ao mesmo tempo que se define as nuances do sagrado, são essenciais. Por este viés, uma reflexão filosófica e científica precede ou se descola do âmbito do fenômeno em si. Com isso, o espaço sagrado se torna uma categoria de análise, uma perspectiva, uma forma de aproximação. Seria um caminho, um recorte investigativo, capaz de escrutinar o fenômeno religioso em diferentes níveis.

É justamente nesta linha que os trabalhos de Gil Filho (2008) e Pereira (2014; 2015) vão se delinear. Partindo da filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer (1994), os autores assumem uma concepção de espaço para além da materialidade cartesiana, isto é: o espaço não se limita a ser um container onde as coisas estão, mas sim se apresenta como um campo de conexão, como espaço relacional. Da mesma forma, o sagrado ganha contornos epistemológicos e não é tratado como uma entidade ou construto cultural apenas; ele é visto como uma espécie de energia mental que significa e simboliza as experiências humanas.

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Com esta abordagem a categoria espaço sagrado pode ser um itinerário investigativo e potencializar a compreensão do fenômeno religioso. Tal categoria pode tanto auxiliar nos estudos da religião através do espaço – como a religião significa os espaços, lugares e territórios; como pode explorar dimensões do espaço através da religião – como espacialidades da experiência religiosa articulam os contextos sociais. Além de também ser um artifício de análise literária/discursiva, pois pode explorar o espaço descrito e significado nos mais diversos textos sagrados, mitos, códigos éticos, sistemas de crenças em geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao observarmos que o espaço sagrado pode assumir diferentes tonalidades, como espaço da religião, do religioso ou como categoria de análise, é fácil perceber a sua polivalência. Embora cada uma das categorizações abordadas tenha limites e qualidades, a última proposta parece estar embebida de mais complexidade; e por isso, nos parece, abarcar um número maior de expressões do fenômeno religioso.

O espaço sagrado é uma interessante ferramenta para decodificar muitas das estruturas e diretrizes das religiões, presentes tanto no mundo físico-material como no universo do pensamento religioso. As inúmeras experiências religiosas, que se apresentam na forma dos espaços sagrados, carregam elementos distintivos de suas tradições e contextos. Compreender e interpretar tais elementos são a chave para um melhor entendimento das matrizes religiosas, bem como das expressões práticas erigidas a partir delas.

Uma sociedade mais coesa só emergirá quando as pluralidades, religiosa, política, racial e social, forem defendidas e respeitadas. Um passo fundamental para tal êxito é fomentar em diferentes níveis sociais uma melhor compreensão das diferentes fés, sistemas religiosos, códigos de vida, maneiras de compreensão da realidade que nos rodeiam. E é justamente neste sentido que o espaço sagrado pode se apresentar como uma ferramenta intelectual pertinente e, mesmo sem uma pretensão universalista ou totalizante, ser um caminho de compreensão.


Referências

CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem: Introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. Tomás R. Bueno. São Paulo: Martins Fontes, [1944] 1994.
GIL FILHO, Sylvio Fausto. Espaço Sagrado: estudos em geografia da religião. Curitiba: Ibpex, 2008.
JACKSON, Richard H.; HENRIE, Roger. Perception of Sacred Space. Journal of Cultural Geography, Vol.3, No.2, 1983, p.94-107.
PARK, Chris. Sacred Worlds: an introduction to geography and religion. Londres: Routledge, 1994.
PEREIRA, Clevisson J. Geografia da Religião e a Teoria do Espaço Sagrado: a construção de uma categoria de análise. Curitiba: Editora CRV, 2014.
______. Espaço Sagrado: debates, abordagens e uma proposta teórica. In: MARCHI, E.; BREPOHL, M. Poder e Religiosidade: o espaço do sagrado no século XXI. Curitiba: Editora UFPR, 2015.
SOPHER, David E. Geography of Religions. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1967.
STUMP, Roger W. The Geography of Religion: Faith, Place, and Space. Lanham, Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2008.