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Por uma utopia suja: Próteses Eclesiásticas

Por uma utopia suja: Próteses Eclesiásticas

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Créditos (arquivo do autor): Márcia X. Série Fábrica de Fallus.

A teóloga Marcella Althaus-Reid evoca uma teologia bissexual. Mas, por que seria importante uma teologia bissexual? A relevância de uma biteologia está em fugir de uma T-Teologia, a teologia imperial, a teologia como ideologia, a teologia posta como uma construção totalitária, Primeira e Única. Trata-se, também, de sair de uma leitura que torna rígida as estruturas binárias e caminhar por vielas e becos escuros. Parece-nos que o ponto de partida de Altheus-Reid é uma experiência desértica, uma experiência na qual o binarismo não faz sentido e se produz outro modo de vida ou se reconhece outros modos de existência na própria escritura ou fora dela.

A experiência da instabilidade da identidade traz para dentro da teoria o que a autora chama de uma identidade bissexual epistemológica, de um desejo bissexual crítico que não coincide, necessariamente, com a dita identidade bissexual. Althaus-Reid considera o seguinte a respeito da temática: “Isso obviamente não é uma questão de identidade sexual individual, mas uma identidade epistemológica que considera a bissexualidade criticamente, isto é, não assumindo que a bissexualidade seja per se uma força libertadora a não ser que haja uma reflexão crítica de sua relação com outras sexualidades” (Althaus-Reid, 2019, p. 34-35). Tem-se, no comentário de Althaus-Reid, um trabalho de tentar sair da díade heterossexual e das identidades. Então, a bissexualidade seria uma identidade epistemológica ou da produção de uma força crítica desértica. O que nos parece importante é que por meio dessa experiência, de uma bissexualidade crítica, tem-se uma abertura. Para a teóloga a questão da biteologia é a da instabilidade da construção sexual da ética cristã. Assim, encontramos a seguinte consideração: “é porque os desejos bissexuais não podem ser determinados de forma estável ou fixa que o processo teológico difere.” (Althaus-Reid, 2019, p. 36). A experiência desértica como vivência ou como epistemologia faz diferir e produz diferença.

A Teologia Bissexual tem como crítica as díades rígidas, mas, como consequência, apresenta-nos uma abertura para outras experiências, para nos defrontarmos com tradições hermenêuticas libertinas. Neste sentido, Altheus-Reid pode escrever que a Teologia Queer “acolheu os praticantes do sadomasoquismo, 24/7, pessoas leather, genderfuckers e travas (o apelido argentino para as travestis) no seio do seu círculo hermenêutico e de suas investigações teológicas” (Altheus-Reid, 2019, p. 48). Faz-se da experiência de transgressão sexual ou da transgressão política pressupostos para a teologia. É com base nesses pressupostos que a teóloga encontra o Marquês de Sade e procura produzir uma teologia contextual sadeana, uma hermenêutica sadeana e, então, queeriza a teologia que sempre foi, no mínimo: estranha e torcida. Nesta epistemologia libertina encontramos outros cânones ou a sua própria subversão apontando sempre para utopias sujas.

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Diante de Altheus-Reid a libertinagem e a orgia ganham conotações políticas. Encontra-se a produção de próteses teológicas como potencialidades de existência e de hermenêutica. Entretanto, é claro que a ideia de libertinagem carrega diversos contornos diante de cada contexto histórico. O adultério ou as relações poliamorosas já foram vistas como atos de libertinagem, mas, hoje, tem-se um estatuto distinto, posto que perderam muito do seu caráter de excentricidade e de escândalo.

Não obstante, a libertinagem estaria ainda envolta a um excesso de liberdade sexual e política, isto é, no âmbito sexual se trata de um contraponto a alguns pressupostos binários. Lembremos que uma gama de termos que produzem o sujeito como uma espécie como, por exemplo, heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade etc., são termos engendrados no ambiente médico do século 18 e 19 (ver Foucault, 2014). A heterossexualidade surge como norma e, por sua vez, as demais surgem como sexualidades periféricas, proliferação das perversões e das sexualidades aberrantes. Para Altheus-Reid a literatura de Sade se apresenta como uma força não-binária contra uma matriz heteronormativa que coloniza a Teologia como T-Teologia. No corpo do libertino o binarismo não existiria. Assim, a autora procura ir além da teologia lésbica e gay afirma que a Teologia Queer seria uma categoria mais ampla, posto que sua “intenção permanente é a instabilidade e, como o libertino na cena sadeana, seu objetivo é não refletir nenhum projeto normativo ao permitir que um processo criativo a partir de interações de ordens diferentes aconteça” (Altheus-Reid, 2019, p. 49).

Neste contexto, tem-se alguns elementos importantes como: 1) a valorização do queer como uma permanência na instabilidade; 2) a valorização da experiência libertina como fonte hermenêutica; 3) e a valorização de novas interações, isto é, outra composição e união dos corpos, dito de outro modo, a positivação da orgia como elemento político. Todo esse conjunto nos parece ser a produção de um suplemento religioso como prática de resistência a T-Teologia, mas, também, a própria estruturação de outro campo de existência, ou seja, a experiência política e, às vezes, coletivas já é a utopia suja da junção dos corpos.

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Créditos (arquivo do autor): Márcia X. Performance, Desenhando com Terços.

 

A construção da prótese teológica parece ter como elemento primeiro a experiência libertina como fonte hermenêutica. Quando a reverenda Ana Ester e o teólogo André Musskopf escrevem em seu manifesto que “Eu fecho a Bíblia a velcro! E abro todos os textos que puder ler com as mãos, com os olhos, com a boca e com o tesão” ou Márcia X produz sua série Fábrica Fallus e a performance Desenhando com Terços (1992-2004), ou ainda, Chris, The Red1O artista Chris, The Red segue o caminho da performance “Desenhando com Terços”, de Márcia X. Na obra “Oração a Contrapelo”, Chris tem a produção de três elementos com expressões artísticas distintas que envolvem a religião: 1) o objeto; 2) o texto-objeto; e 3) a performance. No primeiro elemento se encontra a produção de um terço feito com camisinhas, produz sua “Oração a Contrapelo” estamos diante desses suplementos eclesiásticos e das mutações teológicas surgidas fora da T-Teologia. A fonte artística ou experiencial-literária libertina parece “fornecer material para o início de uma antigênesis, criando processos protéticos nos quais corpos ‘corporificam práxis’ ao encarnarem o escandaloso em seu círculo hermenêutico” (Althaus-Reid, 2019, p. 54).

Compreende-se então que o suplemento eclesiástico utilizado pela Teologia Queer é a própria metamorfose na experiência desértica. O queer na teologia indecente se torna o dildo divino, uma prótese político-sexual teórica. Da experiência desértica Althaus-Reid parece valorizar o encontro como aliança, portanto, como união de corpos políticos: orgia e libertinagem, sujeira libertina. Tomemos um exemplo político e outro literário dessa relação orgíaco-libertina.

No primeiro exemplo pensamos na própria Althaus-Reid e um comentário sobre a política argentina. A teóloga lembra dos descamisados de Eva Perón, da relação que surgia em seus comícios que misturavam os corpos dos povos indígenas e das multidões de pobres. Portanto, um excesso ululante com característica orgiástica, com a produção de relações, uma libertinagem que contrapõe, por exemplo, as segmentações. Para Althaus-Reid (2019) “como em Sade, o que era excitante não eram os corpos reunidos sem começo e nem fim claros, ou mesmo ao longo de conhecidas estradas de comunicações da carne, mas sim o fato de que algo novo estava por vir, anunciado pela mistura de corpos de ideais de modos alternativos” (p. 56).

No segundo exemplo tomamos como fonte a literatura de Camila Sosa Villada e o seu livro O Parque das Irmãs Magníficas. Villada conta a história da travesti Tia Encarna que encontra um bebê no parque Sarmiento de Córdoba, na Argentina. Na história dessa relação entre Tia Encarna e a criança se tem a narrativa de várias travestis que trabalhavam naquele parque. Mas, a interação improvável, a composição e união de corpos se dá quando os refugiados se encontram com as travestis. Villada narra da seguinte forma:

“Por aqueles anos, apareceu na cidade um sem-número de refugiados de guerras travadas na África. Chegaram ao nosso país com a areia do deserto ainda grudada nos sapatos, e dizia-se que tinham perdido a cabeça em combate. As mulheres enlouqueceram com eles porque sua ternura, sua sensualidade e sua disposição para a brincadeira eram lendárias. Tinham sofrido muitas penúrias na guerra, quase as mesmas que as travestis na rua, e isso os converteu em objetos de desejo e heróis de guerra ao mesmo tempo. Os Homens Sem Cabeça fizeram cursos rápidos de castelhano para poderem falar nossa língua, e foi assim que soubemos que haviam perdido a cabeça e agora pensavam com todo o corpo e só recordavam as coisas que tinham sentido com a pele.” (Villada, 2021, p. 35. Itálico nosso).

O que encontramos n’O Parque das Irmãs Magníficas é a aliança entre refugiados e travestis, e a relação daqueles refugiados que sofreram quase da mesma forma que as travestis. A respeito da travesti-imigrante as pesquisadoras Sara York e Neon Cunha lembram como Gisberta Salce Júnior se tornou um símbolo de múltiplas discriminações como, por exemplo: a prostituta; a moradora de rua; a soropositivo; a transexual e, também, a imigrante. Assim, as alianças produzidas com Gisberta foram de outra ordem e, especialmente, após a sua morte, encontra-se a sensibilidade musical e poética de Pedro Abrunhosa, mas, também, de uma gama de minorias que se aliam aquela história. Falamos de uma relação orgíaco-libertina que produz outra composição política por meio da experiência desértica, a relação orgíaco-libertina na sua radicalidade de juntar os corpos.

Althaus-Reid evoca a ideia de orgia e libertinagem ponderando a literatura de Sade, mas, além disso, ela evoca diversas composições políticas e uma força que recuperaria o escândalo orgíaco e libertino na teologia. Um escândalo que a Teologia Imperial estaria sempre rechaçando. O que esta Teologia evitaria é “Deus entre as pessoas queer, e o Deus Queer presente em Si mesmo; Deus, como encontrado na complexidade das sexualidades e relacionamentos rebeldes das pessoas; Deus, como presente na via rupta de caminhos de práxis anteriormente não reconhecidos” (Althaus-Reid, 2019, p. 58). A conclusão teológica que Althaus-Reid propõe na esteira de Jean-Yves Lacoste é que aqueles corpos da orgia e da libertinagem falam e Deus fala através deles. Jean-Yves Lacoste chama esse dado de “existência kenótica” e forçosamente Althaus-Reid conclui que seria necessário perceber que se os seres humanos existem apenas na imagem de Deus e isso poderia significar que “a queeridade é algo que pertence a Deus, e que as pessoas são divinamente queer pela graça” (Althaus-Reid, 2019, p. 58).

A teologia indecente de Althaus-Reid agora encontra Deus na cartografia dos becos escuros e nas curvas sensuais das vielas. Ela encontra Deus na orgia dos corpos e na libertinagem. Mas, se não tivermos os olhos religiosos de Althaus-Reid para ver Deus nos becos, talvez os nossos olhos laicos encontrem – nas mesmas vielas – estilizações de vida que produzem um mais-valor criativo produzido nas alianças sujas, isto é, nas práticas de liberdade e resistências, na composição de uma utopia suja.

 VEJA TAMBÉM
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Referências

Althaus-Reid, Marcella. Deus Queer. Trad. Fábio Martelozzo Mendes. Rio de Janeiro: Metanoia, 2019.

Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

Ester, Ana; Musskopf, André. Um Manifesto Teológico Queer – ou religião em múltiplas posições. In: Leopoldo, Rafael; York, Sara. (orgs). Manifestos do Cu do Mundo, (no prelo).

Sade, Marquês. 120 dias de Sodoma ou a Escola da Libertinagem. Trad. Alain François. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Villada, Camila. O parque das irmãs magníficas. Trad. Joca Reiners Terron. São Paulo: Planeta, 2021.

York, Sara; Cunha, Neon. Um vácuo “cis” na história e a emergência do corpo trans. Rosalux.org.  Acessado em: 28 de jan. de 22.

Notas

  • 1
    O artista Chris, The Red segue o caminho da performance “Desenhando com Terços”, de Márcia X. Na obra “Oração a Contrapelo”, Chris tem a produção de três elementos com expressões artísticas distintas que envolvem a religião: 1) o objeto; 2) o texto-objeto; e 3) a performance. No primeiro elemento se encontra a produção de um terço feito com camisinhas