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Messias (Bolsonaro) e as crianças: o que esperar da nova geração?

Messias (Bolsonaro) e as crianças: o que esperar da nova geração?

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Então levaram-lhe algumas crianças para que pusesse as mãos sobre elas e pronunciasse uma oração. Os discípulos as repreendiam. Mas Jesus disse: “Deixai as crianças e não as impeçais de se aproximarem de mim, pois o reino de Deus pertence aos que são como elas”. (Evangelho de Mateus 19,13-14)

O texto acima está presente nos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Sabemos que “evangelho” é um estilo literário. Paralelamente, os textos sagrados possuem uma forma interessante de serem lidos. Já tratei disso algumas vezes utilizando como base teórica o primeiro capítulo do livro Mimesis (“A cicatriz de Ulisses”), de Erich Auerbach. Os conceitos de realidade e verdade trabalhados por este autor ajudam a definir a política de tais escritos. Auerbach apresenta a interpretação simbólica, os significados morais, as funções dos textos gregos, as camadas dentro de cada personagem e, ulteriormente, realiza esse exercício no texto hebraico sobre a narrativa do sacrifício de Isaque pelo seu pai Abraão.

Ao contrário de Homero em A Odisseia, os relatos bíblicos são cridos como verdade. E o que é verdade? Auerbach diferencia verdade de realidade. Os autor dos textos sagrados são uma espécie de mentirosos políticos conscientes de suas metas.  Verdade é um relato apaixonado, carregado de segundos planos, cujo conteúdo é uma adaptação do mundo heurístico e adaptado pedagogicamente para determinado fim. Em outras palavras, verdade é um ensinamento imperioso adaptado para determinada sociedade e contexto. Portanto, a comunidade baseará seu ethos naquela composição que só a partir do avançar do tempo que vai se tornando histórica. É aqui que entra a diferença entre ambos os conceitos. Realidade encontra-se no plano histórico, do mundo, como a própria raiz da palavra define, real. A realidade é aonde é. Por mais que hermeneutas busquem ampliar os efeitos da realidade (utilizando, por exemplo, a teoria da recepção – que para mim não passa de pragmática política de cunho devocional), seu caráter é pedagógico por si, não há camadas, não há metáforas. É.

Os textos evangélicos trazem as crianças da realidade para representarem no plano da verdade (do ensino) alguns grupos. Como o contexto é sobre o casamento, não há outro gênero que sobressaia naquela cultura senão o homem. É ele quem domina a mulher, os filhos, os escravos. As crianças surgem aqui como um modelo para o ensino dos autores, pois apenas os que fossem como “as tais” poderiam herdar o reino dos céus. E quem são as crianças? São os pequeninos, os fracos, os humildes. Aliás, os escravos também eram chamados de crianças por causa da mente e da condição social “semelhantes”.

Todos nós já fomos crianças. A diferença está em responder no que nos tornamos ou no que fizeram-nos tornar. Abaixo temos, por exemplo, a imagem de uma criança de 5 anos com o seu pai. Aparentemente, pessoas humildes como alguns discípulos que pescavam para sobreviver. O senhor abaixo é Percy Geraldo Bolsonaro. A criança é seu filho, Jair Messias Bolsonaro que, na juventude, alistou-se na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) para seguir carreira. Após um período, retornou para casa com vontade de desistir, mas ouviu de seu pai: “Você vai voltar, se formar e ainda vai ser o presidente”1Disponível em: <https://istoe.com.br/onde-tudo-comecou/>. Acesso em: 02 de nov. de 2021..

Fonte: Instagram de Jair Messias Bolsonaro (@jairmessiasbolsonaro)

O “palmitão”, como era conhecido Jair, por gostar de colher palmito nas matas, já havia dito que seria presidente quando criança, o que gerou gargalhadas entre seus amigos de escola. Seguiu carreira militar e posteriormente rumou para a política até se concretizar aquela declaração e a “profecia” de seu pai. Tornou-se presidente do Brasil em 2018 utilizando como bandeira o versículo bíblico “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. O mesmo verso do evangelho de João 8,32 foi escrito na fachada da escola Dr. Jayme Almeida Paiva, prefeito duas vezes na cidade de El Dourado, onde Jair estudou quando criança. Curiosamente, Rubens Paiva, ex-deputado e neto do Dr. Jayme Paiva, foi torturado e executado durante a ditadura civil-empresarial-militar – fato descoberto após 40 anos com a Comissão Nacional da Verdade2Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/origem-em-eldorado/>. Acesso em: 02 de nov. de 2021..

A ditadura, interpretada por Jair como uma Revolução que combateu a ameaça comunista no Brasil, ainda é defendida em seus discursos. A forte presença de militares em seu governo, a crítica e a ameaça constantes às instituições (como o Supremo Tribunal Federal – STF), a exaltação a personagens responsabilizados por torturas, conferem a Jair um distanciamento abismal dos “pequeninos” daquele Messias dos Evangelhos.

O Brasil atinge um número de quase 20 milhões de pessoas com fome, ocupa o terceiro lugar na América Latina quando se fala de maior inflação, que faz com que o preço de alimentos, gás de cozinha, combustível e outros aumente. Os “pequeninos” (“crianças”) hoje estão em filas para garantirem carcaças/ossos para alimentação. O desemprego está acima de 14 milhões de pessoas. Além desses pontos, há outros “pequeninos” que são mortos violentamente nas ruas da cidade sofrendo preconceito de raça, gênero, classe social. Estes são os pequeninos brasileiros.

O descaso com essa população tem sido denunciado por diferentes partidos, instituições, artistas, jornalistas (investigativos), pesquisas acadêmicas, CPI’s. Tudo baseado em dados. Todavia, existem dois elementos que penduram o presidente na cadeira: o apoio das elites econômicas e a imagem construída a partir das redes sociais. E as crianças – minha hipótese – são usadas como importante propaganda (e não só, como veremos).

A imagem de crianças no governo de Jair serve para tentar suavizar a retórica do mal. Lembremo-nos de Hitler, que era fotografado com sua cadela Blondie e com crianças demonstrando uma face diferente daquela que viríamos a conhecer (Langer, 2018; Urwand, 2019). Na Alemanha nazista havia um projeto chamado Lebensborn (que também foi imposto em outros países europeus, como Polônia e Noruega), que significa “Fonte da Vida”. Tratava-se de um programa liderado pelo arquiteto do holocausto Heinrich Himmler, também considerado braço direito de Hitler. O objetivo era consolidar a raça ariana no mundo. Hitler dizia que “cada criança que uma mãe traz ao mundo significa uma batalha vencida para a continuidade do seu povo”3Disponível em: <https://www.revistaplaneta.com.br/lebensborn-as-vitimas-pouco-conhecidas-da-loucura-nazista/>. Acesso em: 02 de nov. de 2021..

Lebensborn, cuja política era administrada pela SS, seguia um programa em que homens e mulheres “racialmente puros” deveriam ter relações para gerar filhos que seriam criados e educados pelo Estado alemão a fim de formar uma “raça forte” e “pura”. Após a Segunda Guerra, descobriu-se que havia casas secretas para essas relações sexuais ocorrerem.

Quem chegou até aqui na leitura deve estar elaborando sua crítica: Como tal comparação poderia ser adequada à realidade nacional? Da mesma maneira em que o evangelho possui sua realidade e sua verdade, capaz de trazer grupos, personagens, cenários capazes de representar algo maior, temos aqui o Lebensborn como um conceito de ação política com viés totalitário, em que a ideia é investir nas crianças para que as próximas gerações assumam a ideologia presente.

A defesa pelo armamento da sociedade é um dos pontos fortes no discurso de Jair acerca das melhorias na Segurança Pública. Desde sua campanha, as redes colecionam algumas imagens em que crianças são flagradas como um reforço dessa apologia (ver abaixo). E é importante lembrar que “atualmente, o Estatuto do Desarmamento proíbe a fabricação e a venda de simulacros de armas, inclusive de brinquedo”. E o que a lei permite? “Permite a fabricação de imitações de armas desde que elas sejam destinadas a instrução ou coleção de usuário autorizado […] e não permite exceções para brinquedos” (grifos meus)4Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/698184-projeto-permite-venda-de-imitacoes-e-armas-de-brinquedo-se-fabricadas-na-cor-laranja/>. Acesso em: 02 de nov. de 2021..

Fonte: Catraca Livre (https://catracalivre.com.br/cidadania/bolsonaro-ensina-crianca-a-fazer-arma-com-a-mao-e-causa-polemica/)
Fonte: twitter.com/jairbolsonaro

 

Fonte: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,bolsonaro-volta-a-posar-com-crianca-fazendo-sinal-de-arma,70002410192
Fonte: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/capitao-assumcao-exibe-nas-redes-foto-da-filha-empunhando-pistola-automatica/
Fonte: https://www.novoeste.com/index.php?page=destaque&op=readNews&id=42921&title=Estimulo-a-viol%EAncia-Crianca-fardada-segura-arma-de-brinquedo-no-colo-de-Bolsonaro
Fonte: A Postagem (https://www.apostagem.com.br/2021/10/01/bolsonaro-usou-crianca-para-fazer-apologia-a-violencia-e-violou-o-eca/)

Óbvio que, como um projeto, isso tem seus desdobramentos que podem ser percebidos em outras imagens: a de pais que, influenciados, passam a influenciar seus filhos (imagens abaixo). Isso aponta para algo que ainda não está claro para muitas pessoas. Jair não é uma novidade no país. Ele é a encarnação de um projeto antigo. O “bolsonarismo” o precede. A “aparição” de Jair contribuiu como ímã diante de indivíduos inclinados a esse tipo de narrativa.

Óbvio que, como um projeto, isso tem seus desdobramentos que podem ser percebidos em outras imagens: a de pais que, influenciados, passam a influenciar seus filhos (imagens abaixo). Isso aponta para algo que ainda não está claro para muitas pessoas. Jair não é uma novidade no país. Ele é a encarnação de um projeto antigo. O “bolsonarismo” o precede. A “aparição” de Jair contribuiu como ímã diante de indivíduos inclinados a esse tipo de narrativa.
Fonte: https://twitter.com/estadao/status/1020835821430034434
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/em-convencao-de-bolsonaro-crianca-simula-armas-com-as-maos.shtml

 

Fonte: https://twitter.com/andrefernm/status/1020741195889283072?lang=sr
Fonte: https://twitter.com/andrefernm/status/1020741195889283072?lang=sr

Na Alemanha o projeto Lebensborn tinha como objetivo fazer com que as crianças fossem totalmente submetidas à educação do Estado nazista. No Brasil, esse papel foi encaminhado às famílias conservadoras. E onde podem ser encontrados esses pais capazes de alimentar um tipo de educação capaz de neutralizar o senso crítico da criança impondo sobre ela a não-realidade e a visão armamentista? Minha hipótese: no setor religioso. Vejamos abaixo:

Fonte: https://revistaforum.com.br/rede/como-dialogar-com-um-evangelico-parte-05-o-principe-da-paz/

 

 VEJA TAMBÉM
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Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/alvaro-costa-e-silva/2019/06/com-cristo-fazendo-arminha.shtml

Igrejas e movimentos religiosos, sobretudo cristãos, não fugiriam à regra. Fazem parte desse quadro sinistro traduzido em projeto para o futuro. Os danos cometidos no período da ditadura ecoam. E poderão ecoar muito mais e com intensidades exponenciais. Não apenas no Brasil, mas um vento conservador e fundamentalista sopra seus ares no continente Americano. A tarefa não é apenas observar como isso ocorre. As instituições precisam funcionar adequadamente, as universidades devem defender a liberdade de cátedra e sustentarem um ensino de qualidade, a espiritualidade deve se concentrar no ser humano e não no capital… E tudo isso que acabei de elencar está cercado por arames da confessionalidade.

A verdade, impreterivelmente, deve estar associada à realidade. Pois, de fato, só a verdade liberta. Caso contrário, o cenário que já nos é anunciado, será catastrófico, sem esperanças e banhado a sangue. Muito sangue. A política demonstra precisar da religião como importante fábrica de reprodução ideológica. Jamais pretendo generalizar este setor, todavia, é impossível deslocá-lo dessa arquitetura montada.

O menino de 5 anos que pescava com seu pai e pegava palmito na mata tornou-se um produto de um sistema maior que ele. Sugou sua consciência e o projetou no cenário político para dar voz (novamente) a um Estado que preza pela exclusão, violências, mentiras… Muitas crianças de hoje continuam sendo massacradas, impedidas de acessarem a verdade e alimentadas como máquinas para terem consciência de(a) massa a fim de propagarem um mundo vazio.

Desse jeito, não há quem chegue aos céus.

 


Referências

LANGER, Walter C. A mente de Adolf Hitler: o relatório secreto que investigou a psique do líder da Alemanha nazista. Rio de Janeiro: LeYa, 2018.

URWAND, Bem. O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler. São Paulo: LeYa, 2019.

Notas

  • 1
    Disponível em: <https://istoe.com.br/onde-tudo-comecou/>. Acesso em: 02 de nov. de 2021.
  • 2
    Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/origem-em-eldorado/>. Acesso em: 02 de nov. de 2021.
  • 3
    Disponível em: <https://www.revistaplaneta.com.br/lebensborn-as-vitimas-pouco-conhecidas-da-loucura-nazista/>. Acesso em: 02 de nov. de 2021.
  • 4
    Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/698184-projeto-permite-venda-de-imitacoes-e-armas-de-brinquedo-se-fabricadas-na-cor-laranja/>. Acesso em: 02 de nov. de 2021.