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Jesus e a multidão: Orgulho LGBTQIA+ e os desafios atuais de ser Igreja

Jesus e a multidão: Orgulho LGBTQIA+ e os desafios atuais de ser Igreja

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513.5441Número atualizado em 28/06/2021 conforme Consórcio de Imprensa. Disponível em: https://especiais.g1.globo.com/bemestar/coronavirus/estados-brasil-mortes-casos-media-movel/ mortes! Quem ressuscitará e fará parar o fluxo de sangue?

 As narrativas apresentadas no Evangelho de Marcos 5.21-43 relatam a ressurreição de uma menina de 12 anos, a filha de Jairo, um dos principais da sinagoga, e a cura de uma mulher que sofria com uma hemorragia havia 12 anos. Há vários elementos materiais e simbólicos nessas narrativas que permitem uma multiplicidade de leituras.

Carolina Bezerra de Souza, em sua tese de Doutorado sobre o Evangelho de Marcos (2017), reflete sobre a situação das mulheres que aparecem na narrativa e revela aspectos importantes para questionar os padrões patriarcais da igreja e da sociedade de então e de agora. Um dos elementos que ligaria as duas narrativas e as experiências da menina e da mulher seria a questão da pureza cúltica e a superação do legalismo religioso em relação a elas por parte de Jesus.

Marcella Althaus-Reid (2006), em seu comentário bíblico queer sobre o mesmo evangelho, reflete sobre a trajetória de Jesus ao longo do relato, evidenciando a realidade de um homem sem família, desempregado e solitário que encontra nas pessoas consideradas impuras e indecentes pela sociedade e pela religião uma comunidade na qual vivencia processos de ressurreição. Ela relembra que os manuscritos originais do Evangelho de Marcos não contêm um relato da ressurreição, apontando para a crucificação como um fracasso do projeto messiânico de poder que evidencia um “Deus redundante”.

Ana Ester Pádua Freire, em um texto em construção (2021), propõe colocar em relevo uma personagem que, muitas vezes, passa despercebida nas leituras dessas narrativas: a multidão. E é a partir dessa perspectiva que se constrói a presente reflexão. Para Ana Ester, “a multidão era reconhecida por Jesus como sua família (Mc 3.32), como ovelhas sem pastor e objeto de sua compaixão (Mc 6.34) e cuidada por ele (Mc 8.6). No entanto, a multidão também era evitada por Jesus (Mc 9.25) fazendo com que ele a abandonasse (Mc 4.36). Para afastar-se dela, Jesus fugiu para o mar (Mc 3.9; 4.1; 6.45) ou pra foi casa (Mc 7.17), mas até mesmo em casa ele não tinha paz, porque a multidão podia aparecer fazendo com que não pudesse comer (Mc 3.20). A multidão ao mesmo temo impede Jesus e provoca o seu deslocamento. Ela move Jesus para um trânsito imprevisível”.

Em novembro de 2019 a performance de um grupo de mulheres no Chile viralizou nas redes sociais e foi repetida ao redor do planeta, em diferentes idiomas e diferentes contextos:

Y la culpa no era mía, ni dónde estaba, ni cómo vestía

Y la culpa no era mía, ni dónde estaba, ni cómo vestía

Y la culpa no era mía, ni dónde estaba, ni cómo vestía

Y la culpa no era mía, ni dónde estaba, ni cómo vestía

El violador eras tú

Diziam as multidões de mulheres, denunciando o patriarcado e a violência contra mulheres em suas múltiplas formas.

Em maio de 2020, em plena pandemia de COVID-19, após o assassinato de George Floyd, as multidões invadiram as ruas de várias cidades dos Estados Unidos e em outros países para gritar: BLACK LIVES MATTER! VIDAS NEGRAS IMPORTAM! E na mesma semana foram noticiadas a morte dos meninos João Pedro Mattos, de 14 anos, assassinado no Rio de Janeiro durante ação policial, e de Miguel Ottávio Santana da Silva, de 5 anos, morto no Recife depois de cair do nono andar do prédio em que sua mãe trabalhava como doméstica.

Nos últimos meses, depois de mais de um ano de Pandemia de COVID-19, de quarentenas intermináveis e distanciamentos sociais preventivos, multidões têm ido às ruas em todo o Brasil para pedir: VACINA NO BRAÇO! COMIDA NO PRATO! FORA BOLSONARO!

E já não se trata necessariamente só de uma questão de ideologia política, partidarismo ou processos eleitorais. Há indícios de prevaricação, crimes contra a humanidade e genocídio que têm levado a vida de milhares e afetado a vida de milhões, especialmente das pessoas e comunidades mais empobrecidas. “Se viemos pra rua em plena pandemia é porque o governo se tornou mais perigoso que o vírus” – dizem as multidões.

Faltam 513.544! e a contagem segue!

Não há dúvidas de que entre as pessoas mais afetadas pela Pandemia de COVID-19 estão as comunidades empobrecidas no contexto de desigualdade social que só aumenta. As denúncias e situações de violência contra as mulheres crescem. Os crimes contra a população LGBTQIA+ se multiplicam!

Na sexta-feira, “uma travesti foi queimada viva no centro de Recife”!

Em meio a esse contexto é possível perguntar onde está o Jesus que ressuscita e cura a menina e a mulher apesar das restrições patriarcais da religião e da sociedade? Onde está o Jesus que caminha com os e as indecentes de uma sociedade e uma religião que normatiza padrões de gênero e sexualidade? Por quê não vem e não é possível tocá-lo em meio à multidão?

Hoje celebramos a diversidade sexual e de gênero no contexto do mês do orgulho LGBTQIA+. O primeiro motivo para celebrar essa diversidade e afirmar esse orgulho é justamente a sua negação.

Na sexta-feira, “uma travesti foi queimada viva no centro de Recife”!

As pessoas LGBTQIA+ seguem sendo vítimas do preconceito, da discriminação e da violência por questões de gênero e sexualidade. Estão entre as vítimas de feminicídio, do racismo e da Pandemia de COVID-19. Seu gênero e sua sexualidade são a sua causa mortis!

Se não fosse tempo de Pandemia, as paradas do orgulho LGBTQIA+ estariam tomando e colorindo as ruas de centenas de cidades por todo o país. Reclamariam da indecência ao ousarem exibir seus corpos, ostentando todas as cores e formas. Diriam, de modo redundante, que é um carnaval da indecência e da safadeza. Ririam ou admirariam complacentemente o jeito quase tosco (ou criativo) de se tornarem visíveis mesmo quando, no cotidiano, permanecem invisíveis, anônimos e anônimas. E passariam sambando na cara da sociedade sua inconformidade e resistência; só porque sim!

Na multidão com as cores do arco-íris, pelo menos uma vez ao ano, celebram os modos diversos de ser e viver, reivindica-se direitos e denuncia-se todas as formas de violência das quais são vítimas. Na multidão multicolorida e multiforme interrompem a vida normal de uma sociedade e de uma igreja que os e as mortos e mortas e mobilizam as forças geradoras de vida para que sejam atendidas e atendidos em suas necessidades. Ressuscitam como a cigarra da qual canta Mercedes Sosa:

Tantas vezes nos mataram

Tantas vezes morremos

Entretanto estamos aqui

Ressuscitando

Graças damos à desgraça

E à mão com punhal

Porque nos matou tão mal

E seguimos cantando

Cantando ao sol

Como a cigarra

Depois de um ano

Debaixo da terra

Cantando ao sol

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Igual a um sobrevivente

Fazem festa, pois em todas as festas populares, que misturam o sagrado e o profano encarnados na vida, está a resistência às formas de morte e o sonho de um futuro de paz e justiça. Os batuques que saíram dos terreiros, o samba que desceu do morro, as romarias aos santos indesejados e às santas indesejadas. Ainda que provisoriamente, a multidão resiste e cria rupturas para um outro mundo possível.

No Evangelho de Marcos, segundo Ana Ester, “a multidão cruza o caminho de Jesus e novamente o move. Da terra para o mar, do mar para o monte, do monte para a casa, da casa para a sinagoga, da sinagoga para a rua, da rua para a cruz. O que poderia ser um fracasso da multidão é, em realidade, um fracasso da expectativa messiânica”. No caso das narrativas sobre a filha de Jairo e da mulher com fluxo de sangue, afirma a autora que “a multidão que previne muitas pessoas de se acercarem de Jesus é a mesma multidão que permite que a mulher se aproxime de Jesus, porque somente na multidão a mulher poderia ousar tocar Jesus esperando que não fosse reconhecida”. Nas paradas do orgulho LGBTQIA+ ousam dizer seu nome e buscam um poder que sai da multidão para seguir vivendo.

Aqueles e aquelas para quem Jesus ou o Cristianismo são importantes em suas vidas também estão presentes nas Paradas do Orgulho LGBTQIA+. Também estão em busca de algo que ressuscite aqueles e aquelas que lhes foram tirados e tiradas e que faça com que cesse o fluxo de sangue dos corpos violentados, mutilados e assassinados. E regozijam no prazer de estarem vivas e vivos e em comunhão com as suas e os seus.

Na tradição cristã apresentada no Evangelho de Marcos, o encontro com Jesus acontece no meio da multidão e é lá que a sua Igreja se torna força de vida, comprimindo-o, apertando-o, fazendo-o mover-se. Para que suas filhas e seus filhos não morram precocemente por causa da violência de gênero, do racismo impregnado nas relações sociais e da fome que leva milhões a se exporem a situações degradantes e de risco de contaminação e morte por causa do COVID-19.

Jesus está no meio da multidão e ela o conhece. Dele reivindica que cessem as mortes e as dores de quem tem 12, 14 ou 5 anos e de quem sofre há 5, 50 ou 500 anos por causa do machismo, do racismo e da LGBTfobia. Para uma Igreja que se identifica com esse Jesus, é tarefa fazer-se multidão juntamente com as multidões para reencontrar esse Cristo que ressuscita e dá vida; somente porque sim.

Aqueles e aquelas que morreram não retornarão à vida. As pessoas seguirão sofrendo a sua perda e a falta que fazem. As pessoas que morreram de COVID-19 e de crimes de ódio por orientação sexual e identidade de gênero são as chagas que carregam em seus corpos e pelas quais clamam que retorne a vida perdida aos 12 anos e cesse o sofrimento que já dura 12 anos. Está em suas mãos o poder de mobilizar a igreja e a sociedade para salvar as vidas de quem já não pode respirar nos hospitais e leitos de UTI e de cujo sangue mancha as ruas de nossas cidades, os becos e matagais nos quais seus corpos são martirizados.

No meio da batucada e ao som de trios elétricos pedem piedade, Senhor, piedade. Dançando e cantando nas ruas dizem vida! pão! vacina! educação! E têm orgulho da diversidade sexual e de gênero! Para que a igreja e sociedade ressuscitem e para que cessem os fluxos de sangue! Como diz Marco Benedetti:

Te quiero porque tu boca

Sabe gritar rebeldía

Y en la calle, codo a codo

Somos mucho más que dos


Referências

 ALTHAUS-REID, Marcella. Mark. In: GUEST, Deryn; GOSS, Robert E.; WEST, Mona; BOHACHE, Thomas (ed.). The Queer Bible Commentary. London: SCM Press, 2006. p. 517-525.

SOUZA, Carolina Bezerra de. Marcos: Evangelho das mulheres. Tese de Doutorado. PUC/GO, 2017.

FREIRE, Ana Ester Pádua. Mark. In: The Queer Bible Commentary. Em preparação.

Notas

 

  • 1
    Número atualizado em 28/06/2021 conforme Consórcio de Imprensa. Disponível em: https://especiais.g1.globo.com/bemestar/coronavirus/estados-brasil-mortes-casos-media-movel/