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As relações entre Religião e Estado no Brasil

As relações entre Religião e Estado no Brasil

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A relação entre religião e Estado é objeto de estudo frequente na área das Ciências Sociais, de modo particular nas áreas de História, Sociologia e Ciência Política. O crescimento da religiosidade nas últimas décadas tem mobilizado significativa atenção dos pesquisadores para a interconexão entre política e religião no mundo contemporâneo. Tendo em vista o avanço dos grupos religiosos no cenário político brasileiro e, assim, o crescimento do caráter conservador nas discussões e nas legislações propostas nos últimos anos, alguns assuntos tem se tornado tabu na política nacional. Por isso, julga-se importante que os pontos discutidos neste texto apresentem contribuições para analisar esse fenômeno, numa perspectiva histórica, bem como os desdobramentos da presença religiosa na política brasileira.

A interconexão Estado e religião, no Brasil, é o resultado de um longo processo que acompanha nossa história desde o século XVI. O poder construído, no período colonial, estabeleceu o Catolicismo. Nele, a Igreja Católica, era uma instituição subordinada ao Estado e a religião oficial funcionava como instrumento de dominação social, política e cultural. Sob domínio da Coroa, a Igreja Católica objetivava obter controle sobre a vida social dos colonos. O aparelho eclesiástico, por meio de conventos, paróquias, irmandades, da pregação, dos sacramentos, da confissão e das festas religiosas lembrava à população das normais morais a serem seguidas e as penalidades reservadas aos transgressores.

Ser católico era uma identificação da maior parte dos que viviam em terras brasileiras e participar das atividades religiosas representava ser aceito socialmente. Formou-se uma sociedade necessitada em apelar para instituições religiosas para conseguir emprego, garantir sepultura, conseguir remédio, obter atendimento médico, cabendo ao Estado cuidar da administração financeira e da força.  Materializou-se uma sociedade colonial em que era quase impraticável viver ausente à vida religiosa, quase todos os eventos marcantes da vida passavam pelo catolicismo. Mais do que uma instituição voltada para a vida religiosa, a Igreja Católica desempenhava as funções de registro civil, escola, serviço social, organizadora de festas e reguladora da vida familiar e social. Ou seja, a Igreja era de fundamental importância para o Estado na medida em que contribuía no controle e na administração da sociedade. No século XVIII, tendo em vista as ideias Iluministas, uma crise nesse modelo foi iniciada e, simbolicamente, concretizada em 1759, com a expulsão dos jesuítas do Brasil.

As relações entre a Igreja Católica e Estado se reaproximam com a Independência quando, na Constituição de 1824, passou a prevalecer o Padroado Régio.

Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.
Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado.
II. Nomear Bispos, e prover os Beneficios Ecclesiasticos.
XIV. Conceder, ou negar o Beneplacito aos Decretos dos Concilios, e Letras Apostolicas, e quaesquer outras Constituições Ecclesiasticas que se não oppozerem á Constituição; e precedendo approvação da Assembléa, se contiverem disposição geral.
(www.planalto.gov.br)

Ao Imperador cabia o direito ao padroado (prerrogativa de preencher os cargos eclesiásticos mais importantes) e ao beneplácito (aprovação das ordens e bulas papais para que fossem cumpridas, ou não, em território brasileiro). Os próprios sacerdotes eram tratados como funcionários públicos, recebendo salários da Coroa. Por força do padroado, a Igreja se integrava com o Estado. A Igreja possuía assim um papel político: oferecia à população os ritos – Batismo, Casamento, Comunhão, Funeral – além de conferir solenidade a eventos sociais e familiares.

A situação se modificou gradualmente ao longo do século XIX. Tudo começou em 1864, quando o Papa Pio IX enviou uma bula papal  determinando, entre outras coisas, que todos os católicos envolvidos com a maçonaria fossem imediatamente excomungados. A determinação atingiu diretamente o Imperador, Dom Pedro II, que integrava os quadros da instituição recriminada. Valendo-se dos poderes garantidos pelo sistema de padroado, o imperador brasileiro elaborou um decreto em que não reconhecia o valor da ordem dada pelo Papa. Inicialmente, a ação de D. Pedro II não teve grandes repercussões, uma vez que a maioria dos eclesiásticos brasileiros apoiava a monarquia. Todavia, os bispos de Olinda e Belém acataram a orientação de Pio IX. Assim, o Conselho do Império brasileiro  condenou os Bispos Dom Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira (Olinda e Recife) e Dom Antônio de Macedo Costa (Belém do Pará). Ficou então patente que a Igreja no Brasil Imperial tornara-se tão somente uma Repartição Pública do Estado Brasileiro.

Com a proclamação da República e a elaboração de uma nova constituição, um novo cenário para as relações entre Estado e Igreja se apresentou. Nesse novo panorama, houve a rejeição de qualquer tipo de união entre o poder civil e o poder religioso, pondo fim, desta forma, ao Regime do Padroado.  Instaurou-se um novo regime: o Estado Laico. Nesta conjuntura, caberia ao Estado garantir a liberdade e a igualdade de todos os cidadãos, independente dos valores morais e religiosos.  Secularizou-se o casamento, o registro civil, os cemitérios e a educação pública.

A nova legislação dificultou a intervenção religiosa em assuntos relativos à moral, à família e à educação. Contudo, a Igreja Católica, estava livre para proclamar seus documentos e cobrar o dízimo sem interferências do Estado. Enfim, a separação Igreja e Estado significou para a Igreja maior autonomia em relação ao Estado, inclusive nos seus trabalhos no campo social.

O regime de separação em vigor desde a Constituição de 1891, porém, passou por um processo de relativização com a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Na Constituição de 1934, o ensino religioso foi restabelecido nas escolas públicas e o casamento religioso passou novamente a ter efeitos civis o que significou um grande retrocesso nos avanços obtidos desde 1891. Tais modificações constitucionais garantiram à Igreja Católica privilégios em detrimento de outras religiões, pois garantia lugar no espaço público e, assim, a possibilidade de defender seus interesses.

Com o advento da Constituição de 1937, que visava garantir Getúlio Vargas no poder, as mudanças jurídicas nas relações Igreja e Estado foram praticamente nulas, sendo mantidos quase intocados os dispositivos da Constituição de 1934.  Mas nos anos de 1940, o Brasil viveu sua industrialização e urbanização, com reflexos diretos na relação dos indivíduos com a religião e na alteração das esferas do público e do privado. Além disso, nessa mesma época, outras denominações religiosas começam a ganhar espaço na sociedade brasileira, fazendo com que a Igreja Católica esbarrasse em novos obstáculos no campo das relações sociais e, consequentemente, políticas.

Com o fim da ditadura varguista, estabeleceu-se o regime democrático brasileiro e, no que diz respeito às relações Igreja e Estado permaneceram inalteradas. O preâmbulo da Constituição de 1946 faz menção a Deus, revalida o casamento religioso com efeitos civis e mantem o ensino religioso nas escolas públicas.

A partir de 1964, com a ruptura do processo democrático, as mudanças ocorridas pouco alteraram o texto da Constituição de 1946 no que diz respeito às relações Igreja e Estado. Contudo, se no âmbito jurídico-constitucional as mudanças não aconteceram, nos campos social, cultural, intelectual e econômico significativas foram as mudanças. Todos esses aspectos contribuíram para a perda da hegemonia da Igreja Católica, forçando-a a alterar suas estratégias de atuação focando seu olhar para as lutas políticas do campo e nos sindicatos. Substituiu a tradição da caridade, postura histórica da instituição, pelo apoio às mudanças sociais, resultando no nascimento da Teologia da Libertação e, consequentemente, dos Movimentos Eclesiais de Base. Nos anos seguintes do regime militar, a Igreja Católica intensificou o seu compromisso com a mudança social, sendo a principal instituição defensora dos direitos humanos.

Neste contexto, com o processo de redemocratização do Brasil e com a instalação da Constituinte a partir de 1985, temas considerados importantes às instituições religiosas foram discutidos e, por isso, as Igrejas atuaram de forma expressiva na Constituinte para que os seus interesses fossem garantidos, sobretudo, nas questões relacionadas à família, à moral, à educação, à reprodução, à sexualidade, ao planejamento familiar e pela garantia da vida desde a concepção como direito fundamental.

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A Constituição de 1988, em vigo no Brasil, estabelece o Estado laico, mas referencia Deus em seu preâmbulo; propõe sobre a colaboração entre as religiões e o Estado em ações de interesse público, confere imunidade tributária a templos de qualquer culto religioso, permite o ensino confessional nas escolas públicas, mantém o casamento religioso com efeitos civis e concede à família proteção especial. A Constituição Cidadã atendeu à vários interesses das Igrejas, o que possibilitou a continuação das interferências das denominações religiosas, principalmente a Igreja Católica, no espaço público.

Recentemente, em novembro de 2008, o Estado brasileiro assinou um acordo Bilateral com o Vaticano, concedendo uma série de benefícios à Igreja Católica no Brasil.  Esse acordo destaca a importância do ensino religioso e o considera disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, embora de matrícula facultativa, estabelece normas também sobre o casamento, reafirma a imunidade tributária para entidades eclesiásticas e garante sigilo de ofício dos sacerdotes. O Brasil reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar sua missão apostólica, protege o patrimônio histórico e cultural da Igreja Católica e reconhece a personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas nos termos da legislação brasileira.  Tal acordo, representa o maior aliviamento na separação da Igreja e do Estado, pois o governo brasileiro realizou inúmeras concessões a uma determinada religiosidade em detrimento de outras.

O que se pode observar na História do Brasil é que o vínculo entre religião e Estado nunca se rompeu. Percebemos algumas rupturas, mas ainda persistem grandes dificuldades para se estabelece os limites de atuação do Estado e das Igrejas.

Julga-se necessário o avanço da laicidade, pois somente a separação jurídico-constitucional não é suficiente para a legitimidade dos processos políticos, da elaboração de leis inclusivas e da implantação de políticas públicas que possam atender a todos os cidadãos sem nenhuma discriminação. É preciso delimitar as fronteiras entre o religioso e o político, no caso específico da sociedade brasileira, que é demasiadamente comprometida com os interesses religiosos.


Notas

1 É um documento pontifício relativo a temas de fé ou de interesse geral, concessão de graças ou privilégios, assuntos judiciais ou administrativos, expedido pela Chancelaria Apostólica.
2 Composto por até 10 membros vitalícios, com a função de aconselhar em todos os negócios graves e ações gerais da administração pública, especialmente em questões relativas à declaração da guerra, ajustes de paz, negociações com as nações estrangeiras.