O corpo em campo
Peço licença para falar. Antes de ser intelectual, sou mulher negra praticante do Tambor de Mina.
O texto que aqui se segue, foi parte da minha dissertação defendida em fevereiro de 2019 na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O que trago aqui é minha tentativa de pensar a encantaria por meio também das experiências e escolhas da/o pesquisadora/o, ou seja, como problematizar por meio das experiências adquiridas em campo e vivenciadas no cotidiano do tear, do rabiscar do questionar a forma na qual se está produzindo conhecimento nas universidades e na forma como eu venho escrevendo e entendendo, junto como o Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA/UFMA) o campo dos conflitos ambientais e das religiões de matriz africana – religiões afro-brasileiras no Estado do Maranhão.
A minha primeira experiência com a Mina se deu ainda na minha infância no processo de produção da minha identidade, que está em transito contínuo, por meio do medo, o medo das religiões africanas. Este medo é algo que esteve presente comigo desde a infância, principalmente durante a noite, quando eu e minha irmã para dormir precisávamos das rezas da minha avó materna e do sono leve e vigilante da nossa mãe, Marilene Lopes da Silva, é importante escrever/falar o nome das nossas pretas na luta antiracista.
Venho de uma família de pescadores, de católicos e de devotos de São José de Ribamar. Eu cresci e apreendi que somente o catolicismo e o protestantismo carregavam o lado bom da religião. Cresci ouvindo que existia Deus, Jesus e o Demônio e tudo que não era Deus, Jesus ou santos do catolicismo eram do mal (religiões de matriz africana). Como romper com essa visão que foi tão forte e problemática na minha infância, família e escola? Não culpo minha família por isso, nem minha escola por selecionarem o que eu podia ver como “verdade”, pois agora entendo que esse tipo de educação faz parte de um sistema educacional racista, machista, patriarcal, segregacionista, homofóbico e colonialista que alimenta o racismo.
Nesse sentido, o que está em jogo é repensar novas ontologias que digam quem o sujeito é e não o que ele deveria ser, para que possamos ampliar as reivindicações sobre os direitos sociais e políticos. Assim, segundo Butler (2003, p. 57), “o que está em debate são as condições que tornam a vida possível de ser vivida, sustentável”.
Assim, apesar de ser católica, sempre fui envolvida por histórias e visões que me eram estranhas, relatos que eu não sabia explicar, mas que aconteciam na minha família, como por exemplo a de que quando minha mãe disse que sempre tinha alguém que puxava o lençol dela e de seus irmãos à noite quando eram menores e estavam dormindo.
A minha segunda experiência ocorreu no ano de 2015, quando eu estava em Santa Rosa dos Pretos (território quilombola/MA) na Tenda de Mãe Severina, Nossa Senhora dos Navegantes, filmando a festa/aniversário de seu Pedro Légua (encantado). Cheia de medo, e eu nem imaginava em escrever sobre Tambor de Mina, quase nada sabia sobre encantaria, mas, eu estava lá e madruguei. Essa entrada no campo de pesquisa foi bem reveladora o que me fez relatar uma segunda experiência, falando com encantado.
Não sei bem como comecei a me envolver com o Tambor de Mina enquanto religião de matriz africana, uns dizem que desde criança porque nasci quase morta com duas voltas do cordão umbilical no pescoço, mas sei que o quilombo mexe comigo e tem me ensinado muito tenho apreendido sob tudo ouvindo mulheres negras e seus encantadas/os. Essa festa de mina me marcou muito e desde esse dia eu venho acompanhando várias festas/obrigações de entidades diferentes e nessas festas (trânsitos) tanto as pessoas como os encantados me orientam sobre as coisas referentes a Mina (Tambor de Mina) e a vida.
O medo que eu tinha das religiões de matriz africanas foi sendo descolonizado, no momento em que eu pisei firme e com respeito na Tenda de mãe Severina, e a partir do momento em que eu passei a conversar com os encantados fora das festas e da Tenda. Eles agora já me visitavam na minha casa para conversar, tomar um café me aconselhar, pois encantada/o também é madrinha/padrinho, ou seja, se tem respeito elas/es cuidam de ti diariamente.
A minha terceira experiência, nesse observar as coisas, pessoas e encantados da Mina me fez entender que a encantaria é cotidiana, não é só em momentos de festas que ela se apresenta, é na vida.
Em campo eu negligenciava as falas das/os minhas/meus colegas, pois esse não eram filhos da Tenda. Eu estava tão interessada em conversar com a mãe de Santo (Dona Severina) e com suas filhas de santo, principalmente dona Dalva e Maria Luiza (conhecida como Pixita) que acabei por negligenciar outras formas de conhecimentos, ou seja, de entender o Tambor de Mina não só como forma de ser (filho ou filha de santo), mas pelas múltiplas experiências associadas a essa religião de matriz africana que nos permitem formas variadas de entender e questionar a sociedade atual, sua estrutura, por meio de uma perspectiva orientada por eles, nossos guias de luz/encantados.
O conhecimento que estava gritando para mim: “me ouve!” Vinha das experiências dos meus amigos e amigas que de alguma forma estavam envolvidos com o Tambor de Mina, não da mesma forma que um filha/o de santo, mas estavam.
Como costumo ouvi no quilombo, o Tambor de Mina é um mistério, “a Mina é tudo” e ela se apresenta de forma variada para cada pessoa, bem como a mediunidade. As formas de envolvimento estão relacionadas com o sentir/ouvir ou ver os atos/ações de sujeitos e entidades[1] criadores dessa religião, é o que chamo inicialmente de fazer parte sem ser iniciado.
A encantaria (mundo dos encantados) se apresentou para mim de diversas formas e eu demorei muito para entender que a Mina, segundo as pessoas e encantados com os quais dialoguei durante esses anos de pesquisa, é tudo. É tudo no sentido de fazer parte do cotidiano da vida das pessoas (principalmente das mineiras/os), todas as trocas, contatos, conversas, acordos, obrigações entre pessoas e pessoas; pessoas e entidades; entidades e entidades. Segundo Dona Dalva, mulher negra quilombola, “se você cozinha, limpa, cuida, toca um tambor, da uma vela…se você ajuda, ta fazendo parte”.
Uma das questões que me aparecem dentre outras é que a Mina é um dom, porque não é algo que você pede para ter, você nasce com ele. Mais recentemente uma amiga começou seu processo de iniciação, fazer a cabeça no Santo, com uma obrigação para um Orixá. Ela resolveu se iniciar porque em contextos e lugares diferentes, pessoas mandaram recado ou falaram para ela se cuidar porque eles, “as entidades”, queriam levá-la. Ela se iniciou com certo receio e medo, mas, ao mesmo tempo, com o desejo de se “cuidar” para não encantar em qualquer lugar ou até mesmo pelo medo da morte. Vários foram os sentimentos que a influenciaram, várias foram as experiências umas boas e outras ruins. Agora ela parece estar bem e ela me disse: “eu só sentia, agora eu estou começando a ver (os encantados)”.
O Tambor de Mina também existe por causa da união e do compartilhamento de múltiplas experiências que quando se encontram ajudam nesse processo de construção de uma visão de mundo que orienta as ações e escolhas cotidianas das pessoas. Assim,
A religião relaciona-se com o modo de pensar e agir das pessoas, com o seu modo de conhecer e compreender o mundo e de se comportar diante de outras pessoas. Dada a relação entre religião e valores sociais, a análise do comportamento religioso pode fornecer elementos para melhor compreensão daqueles valores vigentes entre a população que adota uma determinada religião, servindo para identificar até que ponto esses valores refletem ou se opõem aos da classe dominante (FERRETTI, 2009, p.10)
Nesse sentido, o corpo encantado é essa explosão de acontecimentos em nós, que faz eclodir uma escrita que grita justiça social e Bem viver. Segundo José Carlos Gomes dos Anjos em uma conversa de orientação, ele pontuou que:
“para o estabelecimento de um devir outro nós como pesquisadores também somos atravessados por esses projetos de violência que cai sobre esses povos e assim uma série de outros devires nos atravessam na escrita e somos deslocados pela força de pensamento do fazer cotidiano dos nossos interlocutores. É principalmente vendo como eles estão fazendo que conseguimos escrever algo” (anotações do caderno de campo de 10 de maio de 2019).
Notas
[1]Nos referimos aqui a espíritos, caboclos, orixás, voduns e encantados que fazem parte do Tambor de Mina.
Referencias
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão; Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro. Civilização brasileira, 2015.
DOS ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2006.
FERRETTI, Sérgio. Querebentã de Zomadônu. São Luís: EDUFMA, 2009. (3ºed).
SANTOS, Dayanne da Silva. NÃO SE PODE ENTRAR EM TERRA DE ENCANTADO SEM PERMISSÃO: um estudo sobre a relação entre pessoas e encantados na luta pelo território quilombola Santa Rosa dos Pretos (Itapecuru-Mirim/MA). São Luís/MA, UFMA, 2019 Dissertação do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais da UFMA.
Negra, feminista, ativista, periférica e maranhense. Sou nascida e criada em São José de Ribamar do Maranhão, meu santo padroeiro de devoção, neta de pescador e de uma marisqueira sou a filha mais velha de uma mãe solteira, que trabalha até hoje de lavandeira. Por conta da dedicação e investimento de minha mãe entrei na Universidade Federal do Maranhão no curso de Ciências Sociais em 2012. Em 2013 me torno membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA/UFMA), nessa universidade conclui o curso e o mestrado em Ciências Sociais. Em março de 2019 entrei no doutorado em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Antes de ser intelectual, sou mulher negra praticante do Tambor de Mina.