O princípio pluralista e os povos originários de Abya Yala
“[…] Não foi assim que fizeram os dzules
quando chegaram aqui.
Eles nos ensinaram o medo,
vieram fazer as flores murchar.
Para que sua flor vivesse,
danificaram e engoliram nossa flor…
Castrar o sol!
Isso vieram fazer aqui os dzules. […]”
(Miguel León-Portilla, 1987, p. 59-60)
Com vistas a traçar considerações a respeito dos povos originários e promover sua valorização no Brasil, é importante retornar aos escritos do teórico e professor argentino Walter Mignolo, partindo de sua elaboração relativa ao pensamento decolonial latino-americano. Nessa perspectiva, é pertinente trilhar os caminhos pelas vias do princípio pluralista, que objetiva ser um agente facilitador na compreensão da pluralidade religiosa e de aspectos antropológicos de grupos considerados e tratados como subalternos. Dessa forma, trata-se de um instrumento hermenêutico e de caráter interdisciplinar que se preocupa de grupos colocados às margens por um projeto social estruturado por invasores genocidas transvestidos intencionalmente de descobridores e colonizadores.
Entre as bases conceituais do princípio pluralista está o já citado pensamento decolonial que, por sua vez, permite fazer emergir a crítica à colonialidade do ser, termo cunhado por Walter Mignolo em discussões de sujeitos que se debruçaram sobre questões relacionadas à colonialidade e decolonialidade.
As fontes conceituais que têm orientado a elaboração do princípio pluralista podem ser categorizadas em seis blocos. O primeiro diz respeito aos estudos culturais de Stuart Hall; o segundo refere-se aos estudos culturais de Homi Bhabha; o terceiro volta-se para a visão sociológica de Boaventura de Souza Santos; o quarto está relacionado às análises sociais latino-americanas de Walter Mignolo, Aníbal Quijano e Catherine Walsh; o quinto aborda os diferenciais de poder das relações sociais/interculturais/inter-religiosas na perspectiva de Kwok Pui-Lan; e o sexto trata das teologias pluralistas, com destaque a Leonardo Boff e Ivone Gebara.
Perpassados por diversidades que versam entre étnicas, linguísticas e culturais, os povos originários de Abya Yala, denominação histórica do continente americano na língua Kuna, compartilham entre si as semelhanças de terem sido vistos sob uma ótica de subjugação e domínio, o que, posteriormente, levou a seu quase total extermínio. Quando não se enxerga o outro como um ser humano e o coloca em condição quase animalesca, abrem-se precedentes para compreendê-lo em sinonímia a produtos, e produtos podem ser explorados e comercializados.
Nessa perspectiva se deu a relação entre os europeus e os povos originários. Os primeiros invadiram as terras e, mais tarde, as dividiram entre América do Norte, América Central e América do Sul. Tal denominação faz alusão àqueles mais civilizados e perto do deus cristão (norte) e aos hereges indecentes mais próximos ao inferno cristão (sul), e os povos originários.
Essa relação entre invasor e invadido define o conceito de colonialidade. Sempre que um povo, apoiado em justificativas de cunho científico ou teológico, se autointitula colonizador, o extermínio físico, cultural e tradicional lança suas teias. E essas características podem perdurar, pois geralmente não são reféns de uma reflexão social. Faz-se, então, necessário, tendo especificamente como recorte Brasil, o exercício da decolonização. O pensamento decolonial, que está entre as bases conceituais do princípio pluralista, apresenta potencial para despir os sujeitos de toda a categorização feita pelos invasores europeus para enquadrar aqueles que não estavam em seus moldes.
Nessa perspectiva, é preciso ouvir a história que ainda não foi contada, senão experienciada pelos povos originários brasileiros que podem ser inseridos não somente em livros, mas em palestras e encontros gratuitos, presenciais ou híbridos, em praças e escolas, para que possam falar. À sociedade civil caberá a escuta e reflexão sobre os paradigmas historicamente instituídos.
Um grande passo parece já ter sido dado recentemente, levando em conta a eleição de cinco representantes dos povos originários para a Câmara dos Deputados nas eleições de 2022: Célia Xakriabá (PSOL-MG), Juliana Cardoso (PT-SP), Paulo Guedes (PT-MG), Silvia Waiãpi (PL-AP) e Sônia Guajajara (PSOL-SP).
O grande desafio a ser vencido reside em não perpetuar uma postura colonizadora. É preciso decolonizar-se para decolonizar a sociedade.
Referência
RIBEIRO, Claudio de Oliveira. Religião, decolonialidade e o princípio pluralista. Numen: Revista de Estudos e Pesquisa da Religião, Juiz de Fora, v. 23, n. 1, p. 21-40, 2020.
Mestranda em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, licenciada em Pedagogia pela mesma instituição. Atualmente dedica-se à pesquisa sobre espiritualidade não religiosa, ou espiritualidade laica, atravessada por questões relativas à prática cinéfila. Membra do grupo de pesquisa Religião e Cultura da PUC – Minas.