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A patologização do corpo não heteronormativo em um cenário de violências

A patologização do corpo não heteronormativo em um cenário de violências

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Este texto é um recorte da tese de doutorado intitulada: A “cura gay” e a patologização das “minorias”: o processo de significação das (anti-)hegemonias por meio de esquemas de imagem metafóricos do corpo-rótulo. Tese completa em acesse aqui.

 

A aparente complexidade na transformação do pensamento discriminatório em relação às “minorias” LGBTQIA+ poderia ser justificada por uma falsa ideia de que a educação sexual não é um tema que deva ser abordado nas escolas. Consequentemente, a construção social e histórica de nossos preconceitos alimenta-se, muitas vezes, pela absoluta falta de novos objetos no espaço educacional que nos permitam problematizar nossas evidências e desconstruir nossas certezas:

Vale lembrar que a homossexualidade tem uma história recente, pois ela é dependente da noção de sexualidade que foi constituída na modernidade (FOUCAULT, 1999; WEEKS, 1999). Sua definição surgiu no final do século XIX. Antes disso, ela era entendida como um “vacilo” que todos poderiam cometer, sem que com isso se passasse a ser um outro tipo de pessoa. […]. Ao se aproximar o final desse século, a heterossexualidade tornou-se norma definidora do possível (ela própria) e do inaceitável (o que dela se afasta). Quanto à heterossexualidade, podemos dizer que esta não tem história; não se encontra um marco que a funde, ela simplesmente é tomada como natural. (FELIPE; BELLO, 2009, p. 146-147).

Nesse sentido, um dos desafios estaria em uma nova educação que questione os aspectos heteronormativos presentes na formação das identidades sexuais e de gênero, auxiliando os educadores e educandos a descobrirem o campo dos limites e das possibilidades impostas a cada pessoa quando se submete aos estereótipos que são atribuídos a uma identidade fixa, sexual e de gênero.

O lugar da homossexualidade compreende um espaço de fraturas e degradações do lugar do ser, em um cenário de violências, pelo binarismo classificatório da realidade brasileira, num binômio masculinidades/feminilidades, ressaltando-se que, nesse atual cenário brasileiro (que se descortina, também, em nível mundial), a patologização dos LBGTs aponta para um paradigma que deliberadamente não se desconstrói, pelo contrário, realimenta-se de novas formas de preconceito e discriminação, ao se pensar em “cura gay”, ou seja, numa terapia de reorientação sexual ou conversão, a qual compreende o uso de métodos que alteram  a orientação sexual de um indivíduo de homossexual para heterossexual.

Embora o preconceito não seja uma especificidade de nossa época, a realidade da cena brasileira tem matado emocional e também fisicamente muitos LGBTQIA+, mesmo em tempos de queerização, em que se parece difundir a teoria queer a todos os cantos do mundo, com o aprofundamento de estudos e a defesa das “minorias” sexuais (gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros etc.) e de demais “minorias” sociais.

A queerização, que defende os sujeitos estigmatizados ou considerados ilegítimos, aponta para uma denúncia a processos que heterossexualizam instituições, discursos, direitos. E, em contrapartida, desarticulam processos que negam ou agregam instituições, discursos e direitos, homossexualizando-os.

O dispositivo do poder heteronormativo coloca o ser em constante conflito consigo e com seus pares e, em se tratando da “cura gay”, torna-se eficiente um tipo de produção de subjetividade controlado, na direção política que se impõe, submetendo essa “minoria” a um diagnóstico e intervenção de uma doença que diz respeito à conduta, aos transtornos antissociais, aos desvios padrões, de acordo com a heteronormatividade.

Em nome dessa dita doença, tem-se matado, discriminado, oprimido, reprimido, rotulado pessoas, com ações que envolvem desde a “cura gay” até os olhares perversos, os assassinatos, com uma homofobia que degrada o lugar do ser humano, impondo um cenário de fraturas e violências, como se pode observar a seguir:

Faixa homofóbica afixada em uma igreja evangélica - Fonte: Gauthier (2016).
Faixa homofóbica afixada em uma igreja evangélica – Fonte: Gauthier (2016).

Aqui, primeiramente, esse versículo bíblico, exposto de forma descontextualizada, longe de seu suporte de gênero, que é a Bíblia – mesmo estando afixado em local religioso – pode soar como uma ameaça ou uma advertência ao homossexual ou à homossexualidade, pela ratificação da sua existência, e, em um segundo momento, como uma maneira de estimular a homofobia e o homocídio, pois apoia-se na argumentação de autoridade reconhecida e de grande domínio social, a Bíblia, que indiscutivelmente, traz para esse enunciado a credibilidade que pode ser o gatilho para legitimar os atos homocidas.

Ao se expor essa faixa como um informativo, dada a sua função genérica social, incita-se o homocídio, estimula-se a violência – num ato considerado crime, que caberia indenização coletiva, por ferir, constitucionalmente, a dignidade da pessoa humana –, pois há um desacordo com os direitos humanos e uma inobservância ao amplo conceito de homofobia, dado pela ABLGT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,   Bissexuais,   Travestis e Transexuais (BRAGA, 2012):

[…] o conceito de homofobia não se refere apenas a agressão física ou assassinato contra a população LGBT. […]  “A homofobia é um conjunto de emoções negativas (tais como aversão, desprezo, ódio, desconfiança, desconforto ou medo), que costumam produzir ou vincular-se a preconceitos e mecanismos de discriminação e violência contra pessoas homossexuais, bissexuais e transgêneros (em especial, travestis e transexuais) e, mais genericamente, contra pessoas cuja expressão de gênero não se enquadra nos modelos hegemônicos de masculinidade e feminilidade. A homofobia, portanto, transcende a hostilidade e a violência contra LGBT e associa-se a pensamentos e estruturas hierarquizantes relativas a padrões relacionais e identitários de gênero, a um só tempo sexistas e heteronormativos”.

Daí denota-se como a extensão do conceito de homofobia, apresentado nesse trecho, revela a possibilidade de se avaliar uma forma de homofobia veiculada nessa faixa, por sua intergenericidade e funcionalidade social, e também tendo em vista o fato de que essa faixa traz, em seu conteúdo, sensações e percepções negativas em se tratando dos homossexuais ou daqueles que se distanciam da matriz hegemônica de masculinidade e feminilidade.

Compreende-se que há uma anuência e banalização do preconceito e da discriminação contra as comunidades LGBTQIA+, tanto no dia a dia dos indivíduos, em seu convívio pessoal, quanto nas mídias de um modo geral, promovendo o sexismo e formas mais concretas de violência como as mortes dessas “minorias” vitimadas.

As manifestações subjetivas dos LGBTQIA+ são estigmatizadas e tomadas como uma disfunção ou distúrbio e são alvos a serem combatidos, antes de serem vistas como manifestações subjetivas dos seres humanos, como o são as manifestações subjetivas de todas as (sub)categorias em que se enquadra o ser humano (como os heterossexuais, por exemplo).

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Isso visa, assim como é denotado da concepção da “cura gay”, a normalizar comportamentos e formas de existir, fazendo dos LGBTQIA+ seres “anormais”, não deixando espaço algum para o sujeito e sua singularidade e, ao que parece, apontam-se razões para pensarmos que o ser humano teme a configuração social a que pertence, desde que ela fuja à norma. Tais fatos tendem a revelar que a natureza humana – que é linguageira – encerra a violência, a recusa, a barbárie e, também, uma necessidade inconsequente de controle.

Há uma medicalização da vida, do ser, numa condenação precoce e recorrente ao não heteronormativo, prevalecendo um mal-estar social inibidor da boa convivência, um mal que parece percorrer uma civilização inteira, tornando suas causas complexas, numa sociedade pós-moderna do século XXI, e suas consequências violadoras do direito constitucional à dignidade humana.

Vale destacar que, nesse contexto homofóbico, funda-se também um contrassenso, pois a conduta que determina essa iniciativa bem pode ser considerada uma discriminação, um preconceito, por ferir, causar comoção, perturbar o andamento e indagar o sistema sociopolítico e cultural.

Nessa perspectiva, acreditamos que, nos tempos atuais, somos convocados a propor trabalhos que nos possibilitem tanto compreender melhor os princípios e conceitos epistemológicos quanto contribuir para a transformação da realidade social e humana em que estamos inseridos.


Referências

BRAGA, O. A evolução da homofobia para o homofobismo. Publicado em: 31 maio 2012. Acesso em: 26 maio 2017.

FELIPE, Jane; BELLO, Alexandre Toaldo. Construção de comportamentos homofóbicos no cotidiano da educação infantil. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Coleção Educação para todos. Brasília: UNESCO, 2009, 455 p.  Acesso em: 03 jul. 2017.

GAUTHIER, Jorge. Igreja evangélica na Bahia coloca placa na porta indicando que gays devem morrer: MP apura o caso. Acesso em: 26 maio 2017.