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Eleições de 2022: desafios e expectativas

Eleições de 2022: desafios e expectativas

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Antes das eleições municipais de 2020, fui convidado para palestrar em uma plenária do Partido dos Trabalhadores situada em determinada cidade fluminense. Como já estávamos em meio à pandemia causada pela Covid-19, o encontro ocorreu remotamente. O tema era “Voto e Religião”. Iniciei minha fala logo após um pastor evangélico filiado ao partido. Lembro-me de ter considerado que o PT nasceu a partir de três representações: intelectuais/artistas, outros trabalhadores e religiosos, que já tinham pelo caminho a Teologia da Libertação (TdL) com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) – visando a justiça social e os pobres. O próprio Lula disse em uma live com Leonardo Boff, em julho daquele mesmo ano, que o PT não existiria se não fosse a TdL. Em suas palavras:

O PT não existiria do jeito que ele existe se não fossem as Comunidades Eclesiais de Base. Eu que viajei o Brasil inteiro para construir esse partido, eu sei o valor de um padre progressista […] As Comunidades Eclesiais de Base não entraram no PT, as CEBs fundaram as células do PT.

A atuação da teologia, da espiritualidade evangélica no PT – no sentido de interpretar a sociedade também por meio do evangelho que tem como protagonista a figura de um homem pobre, injustiçado pelo Estado e que morre pregando a partilha do pão, da túnica, do perdão – PT tem um papel importantíssimo. Uma igreja que acolhe o necessitado e que denuncia um sistema que não é coerente com sua população. No Brasil, um dos nomes que tem se destacado nessa luta é o pe. Júlio Lancellotti, de São Paulo, que trabalha diretamente com a população em situação de rua (“existir no Brasil já é uma rebeldia”). É claro que há muitos nomes que não figuram na mídia estão realizando trabalhos urgentes enquanto o Estado não chega ou faz vista grossa.

Por outro lado, temos instituições evangélicas conservadoras que assumiram o cenário dessa relação igreja-Estado. E isso não é de hoje. Essa força da igreja evangélica em apoio a candidatos de direita já era presente antes mesmo da ditadura. Nesse período, as grandes denominações religiosas, como Igreja Presbiteriana do Brasil, Metodista, Batista, estiveram à frente.

É importante relembrarmos que em 2010, uma igreja batista em Curitiba, cujo pastor era Paschoal Piragine Jr., discursou contra o PT no púlpito de sua igreja. Chamou o partido de “iniquidade institucionalizada”. A partir disso ajudou a acentuar o que eu interpreto como expectativa messiânica. Nós não temos nenhuma figura messiânica nos termos teóricos possíveis, mas vivemos nesse clima (de expectativa de um salvador da pátria).

Enfim, dessa expectativa duas questões importantes devem chamar nossa atenção: a representação política e a defesa pelas pautas morais que atendem não diretamente a igreja, mas servem como distração da degradação social e da distribuição de renda.

Neste aspecto, apresento algumas considerações que apresentei naquele encontro e que podem servir para atualização diante das eleições de 2022, uma vez que o próprio Lula já é apontado em pesquisas como favorito no segundo turno, derrotando o atual presidente.

Antes gostaria de informar que não sou filiado ao PT, mas entendo que tais desafios não serão enfrentados apenas por este partido. Todos aqueles que entendem o valor da democracia e os atrasos em diversas áreas que presenciamos, terão de observar com bastante humildade e ousadia esses apontamentos (que não são os únicos) que faço sobre os eleitores do segmento evangélico.

Trago dois elementos que estão presentes no discurso e que parte dos religiosos evangélicos ajudam a acentuar:

  • o empobrecimento intelectual, e;
  • interpretar o adversário como um “inimigo a ser eliminado”.

 

Empobrecimento intelectual

É comum que a política (segundo Chantal Mouffe) pós-democracia “invista” na ignorância congelando ou retirando dinheiro da educação, criticando o ensino público não-confessional, desconsiderando a ciência e seu avanço com pressupostos ideológicos e religiosos. A racionalidade do (neo)liberalismo impossibilita o que o jurista Rubens Casara chamou de “negatividade”.

O indivíduo que absorveu a lógica bolsonarista, por exemplo, rejeita (nega) a dúvida, o “não”, o conflito intelectual. Em sua racionalidade, aposta em modelos simplistas que, por sua vez, desconsidera pesquisas científicas, observações adequadas sobre determinados fenômenos, acionando suas afirmações baseadas no consumo acrítico de informações.

Essa simplificação conduz ao pensamento estereotipado, responsável pela produção de certas frases/slogans, como: “a culpa é do PT”, “mas… e o PT?”, “mas… e o Lula?”, “vai pra Cuba”, “bandido bom é bandido morto”, “querem tornar o Brasil uma Venezuela”.

O empobrecimento da linguagem nega análises mais sofisticadas e inclina-se ao anti-intelectualismo. Esse é papel do (neo)liberalismo: substituir a crítica pelo indivíduo acrítico e consumidor. As redes sociais favorecem a ligeireza da leitura. Pequenos textos adequados ao gosto do freguês justamente para tornar a informação atrativa, inclusive para o seu compartilhamento em grupos familiares, de amigos e outros.

Esse sujeito da lógica bolsonarista (neo)liberal que usa a internet não está disposto a dialogar. Trata-se apenas de um monólogo, pois sua intenção é produzir efeitos de verdade àquilo que lhe foi imposto pelos grupos que se interessam em moldar a realidade de acordo com suas ideologias de mercado. E qual o resultado disso? A classificação daqueles que são os “cidadãos de bem” e aqueles que precisam ser eliminados. E o discurso religioso legitima e aumenta o peso sobre essa sentença.

Elucidar as informações, investir na educação (aproveitando a divulgação de cursos, aulas, palestras abertas de forma remota), produzir pontes inteligíveis (há progressistas que só escrevem para a academia), são esforços que devem ser encarados de maneira conjunta. Eis aí outro desafio! Levar em consideração o isolamento social e buscar maneiras de interação e divulgação dessas aulas.

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O inimigo a ser eliminado

A anti-política é o combustível da pós-democracia. Ela não enxerga o outro como adversário político, mas como inimigo a ser eliminado. Para isso, é necessário construir uma imagem do inimigo e apresentar (propaganda) o perigo que ele traz consigo. Na trajetória de Bolsonaro, esses inimigos são claros e isso pode ter seus efeitos nas eleições em 2022: os comunistas, os esquerdopatas, os petistas, aqueles que podem corromper a família tradicional, destruir a pátria, fazer fiéis descrerem do próprio “Deus” (cristão), o “marxismo cultural” etc. Aliás, como teólogo, já li a bíblia inteira 5 vezes e já produzi artigos utilizando textos originais: as famílias da bíblia são um horror. O modelo familiar trazido por Jesus, por exemplo, na narrativa construída pelo evangelho de Marcos é totalmente outro. Não é sanguíneo, é fraternal pela solidificação do amor, do altruísmo.

Enquanto a democracia limita o poder, a pós-democracia retira seus limites. Ou seja, o autoritarismo egoísta e acrítico legitima um conflito nada saudável. Nesta senda, precisamos questionar: quem são aqueles que se apresentam como os “nós”? Quem são os “eles”?

As mentes guiadas pelos fatores econômicos (neo)liberais, que contabilizam mortos por Covid-19 meramente através de números frios e não por nomes, tendem a classificar os “inimigos” como aqueles que trarão caos – e ilustram superficialmente com movimentos políticos de Cuba e Venezuela. Não apenas Moufee, mas outros(as) sugerem que os progressistas coloquem as armas sobre a mesa e parem de atacar e de descrer. No caso Brasileiro, continuar tentando o diálogo com os adversários e não tratá-los como “inimigos”, e sim, como aqueles que precisam abandonar o modelo produtivista, anti-intelectual e antiético, uma vez que se pretende uma caminhada cidadã plural – plenamente democrática.

E se o ódio é um afeto identificado nesse grupo que busca eliminar o outro, a construção de um novo “povo” também passa por outros afetos. Freud disse que o que une o mundo são os afetos, portanto, a construção de identidades políticas não podem desconsiderar essa dimensão. E como já pensava Spinoza, só se pode deslocar um determinado afeto através de um afeto oposto, que seja mais forte.

O que esperamos de um candidato para as próximas eleições não é apenas coerência, porque o atual presidente é totalmente coerente com sua própria narrativa. O país carece de investimento substancial na educação, diminuindo o emburrecimento causado por determinadas classes sociais que desconsideram os valores culturais e econômicos; de um choque cultural em que a beleza, a poesia, o amor, o respeito e o jogo político (tal como deve ser) exerçam seu papel na sociedade, trazendo a consciência de pluralidade e de “povo-nação” (nos termos de E. Laclau).

Estes são apenas dois fatores. Há muitos outros. Talvez não dê tempo. Possivelmente, não veremos a concretização disso. Mas o simples fato de assumirmos essas demandas, já teremos, ao menos, nos aproximado um pouco mais da terra firme.

Que venham novos ventos e tempos!