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Um país de maricas – política, economia e religião

Um país de maricas – política, economia e religião

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No último capítulo do livro Indecent Theology (2001), Marcella Althaus-Reid descreve didaticamente a relação entre as normas sociais de gênero e sexualidade e os processos de estruturação da política e da economia global. Esse é, justamente, o seu ponto central para questionar teologias liberacionistas em sua incapacidade de articular tais questões e permanecer estagnadas em suas reflexões e propostas, visto que reféns da cisheteronormatividade.

Apresentando o caso do “encolhimento dos pênis” em Ghana, as experiências de organizações e grupos no enfrentamento à violência contra as mulheres e o relato de uma viúva oprimida e explorada pela família de seu falecido marido, ela explicita as relações intrínsecas entre as estruturas políticas e econômicas globais no contexto neoliberal e os padrões de gênero e sexualidade e os arranjos familiares patriarcais. Em uma das passagens ela afirma: “As políticas de ajuste estrutural são um caso de violência doméstica economicamente institucionalizada” (p. 193).

Dito de outra forma, se entendermos as dinâmicas do patriarcado na organização das relações interpessoais de gênero e sexualidade poderemos entender a forma como opera o capitalismo global e as violências e injustiças que se produzem em ambas dimensões.

Em 10 de novembro de 2020, em apenas uma de suas declarações estúpidas com relação à pandemia de COVID-19, o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, afirmou que o Brasil “tem que deixar de ser um país de maricas”. A revolta do presidente referia-se, entre outras coisas, às discussões e cobranças em torno das já então mais de 160 mil mortes. Na mesma oportunidade ele também afirmou que “todos nós vamos morrer um dia”.

Já há farto material refletindo sobre o uso de “metáforas” sexuais por parte do presidente, seja qual for o tema em debate. Eu mesmo já escrevi sobre o assunto algumas vezes (veja as referências). Para muitas pessoas trata-se 1) simplesmente de um jeito de falar (que poderia ser considerado, inclusive, popular); 2) uma fixação e obsessão com questões relacionadas à sexualidade (especialmente a das outras pessoas). Algumas pessoas chegam a afirmar que tanto a linguagem “sexualizada” quanto a preocupação com questões de moral sexual sejam uma “cortina de fumaça” com o intuito de “distrair” com “polêmicas irrelevantes” de assuntos mais sérios e urgentes.

Se Marcella, e todo o amplo campo de estudos de diversidade sexual e de gênero (ou estudos queer) estiverem certas, a escolha (consciente ou inconsciente) da linguagem e das metáforas sexuais pelo presidente não é acidental. Ela apenas explicita de forma mais evidente aquilo que esse campo já afirma há muito tempo e que está presente em qualquer fala ou ação no campo da política, da economia e da religião: gênero e sexualidade são fundantes na construção do pensamento e da ação em todos os campos. Senão, vejamos dois exemplos mais recentes e menos “polemizados”.

Em seu primeiro pronunciamento público após a anulação dos processos julgados em Curitiba, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, usou uma situação que envolvia a ex-presidenta Dilma Roussef para falar sobre o seu “jeito” de fazer política. Segundo ele, em atividades de campanha na qual ela era candidata, ao visitarem alguma construção, por ser “um pouco inibida, ela ficava meio assim”, e ele teria dito a ela: “Pô Dilma! Encosta, abraça o cara Dilma” (risos da plateia). Na situação, agora tornada exemplo de seu “jeito de fazer política”, o ex-presidente desconsidera a trajetória da ex-presidenta, o fato de ela ser uma mulher diante de um grupo de homens e de ter sofrido violência sexual como parte de sessões de tortura enquanto presa durante o regime militar e praticamente diz “seja homem!”. Em tom jocoso, o ex-presidente ainda disse que já passou a mão em muitas pessoas e acha “que gostavam”.

As questões de gênero na vida política de Dilma Roussef, especialmente durante a sua presidência e no processo de impeachment/golpe, também já contam com diversas pesquisas e reflexões. Não é necessária uma análise profunda e detalhada para perceber que a sua aceitação em alguns setores se deu justamente por ela se portar como “um homem de saia”. Seja para torna-la aceitável ou para impedi-la de exercer seu mandato, os exemplos de como questões de gênero e sexualidade foram acionadas abundam.

Ainda se referindo à ex-presidenta, um outro homem usou outra imagem do campo do gênero e da sexualidade para referir-se a ela. Em entrevista no dia 08 me março, Dia Internacional das Mulheres, Ciro Gomes referiu-se à ex-presidenta e seus mandatos como um “aborto na história brasileira”. Há tanta coisa equivocada nessa afirmação que nem é possível dar conta de tudo. De forma ilustrativa, talvez seja importante evidenciar que a declaração reafirma o estigma que as mulheres que interrompem uma gravidez carregam, desconhecendo as suas reais experiências e, inclusive, o fato de que um aborto pode salvar suas vidas, e se coloca contra toda a luta pela descriminalização e legalização do aborto pelos movimentos feministas e de mulheres.

No mesmo pronunciamento do ex-presidente, em referência a uma outra declaração de seu colega Ciro, Lula o chamou de “moleque” por conta de suas ações e declarações intempestivas e desrespeitosas. Ainda que seja necessário reconhecer uma substancial diferença entre todos esses homens ligados ao poder político institucional, parece que a “molecagem”, a mesma usada para desculpar vários outros homens acusados de estupro e outras formas de violência sexual (como famosos jogadores de futebol), pode ser identificada em cada um deles. Aqui também se aplica a recomendação de Lula a Ciro sobre a necessidade de se “educar”, inclusive para ele mesmo, com relação a essas questões. Pois, seja por lapsos, brincadeira ou “jeitão”, o patriarcado segue firme não apenas nas falas, mas nos jeitos de fazer política no contexto do capitalismo neoliberal globalizado. Só acho.

A aliança entre política, economia e religião, sendo a economia o “ativo” (top) e a política e a religião sujeitos passivos (bottom) de uma relação sadomasoquista não consentida, está absolutamente evidente no contexto da pandemia de COVID-19. Não é à toa que quem defende medidas de contenção da transmissão (distanciamento e uso de máscara, por exemplo), seja identificado como “marica”, inimigo da pátria, do patrão e do senhor (deus). Lideranças religiosas resistem ao fechamento de templos e à paralização de atividades religiosas presenciais alinhadas com a perspectiva política e econômica que vê fieis e crentes, cidadãos e cidadãs e trabalhadores e trabalhadoras como “maricas”. Na sua perspectiva, prejudicam as relações de consumo e resistem ao desejo penetrante e violento dos mecanismos ejaculadores do comércio de bens e da fé que não têm mais como se reproduzir e gerar lucro excedente.

 VEJA TAMBÉM
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Maricas, como diminutivo de “Maria”, refere-se à feminização de todas as pessoas que não cumprem com os papeis sociais, políticos e religiosos prescritos pela cisheternormatividade que estrutura todos os âmbitos de interação humana. Diz do lugar subalterno de todas as mulheres e da sua subalternidade usada como ameaça e desculpa para subalternizar outros, lugar sacralizado pela religião patriarcal. Refere-se à classe, raça e etnia e a todos os marcadores que inferiorizam as pessoas na escala de valores sociais, encontrando no gênero e na sexualidade sua articulação perfeita para mobilizar, inclusive, a adesão de quem é subjugado e subjugada por esse sistema.

Infelizmente, ao contrário do que faz supor o atual presidente, não somos um país de maricas. Muitos e muitas de nós ainda tememos essa identificação e seguimos reproduzindo o sistema que nos mata – mais do que nunca no contexto de pandemia. Afinal, quem quer ser identificado ou identificada como “marica”? E, ainda assim, há muitas maricas em nosso país. Talvez só mesmo essas maricas – loucas, atacadas e despudoradas – sejam capazes de produzir um outro mundo tão desejado. Maricas excluídas dos grandes sistemas que regem o mundo, organizadas e orgasmizadas, em relações de solidariedade e diálogo constante, sem a pretensão de uma redenção final, mas comprometidas com a construção permanente de relações de paz com justiça para todas e para tudo.

Para a religião e a teologia, segundo Marcella Althaus-Reid, “a conclusão surpreendente é que no tempo presente a revelação precisa ser Queer, porque precisa vir de um Deus Queer” (2003, p. 158), um Deus Marica num mundo redimido pelas maricas!


Referências

ALTHAUS-REID, Marcella. Deus queer. Rio de Janeiro: Metanoia, 2019.
ALTHAUS-REID, Marcella. Indecent Theology. London: Routledge, 2001.
ALTHAUS-REID, Marcella. The Queer God. London: Routledge, 2003.
GOMES, Pedro Henrique. Brasil tem de deixar de ser ‘país de maricas’ e enfrentar pandemia ‘de peito aberto’, diz Bolsonaro. G1, 10 de novembro de 2020. Disponível em: g1.globo.com/politica/
MUSSKOPF, André S. O sexo, o gênero e a sexualidade da política e da religião: uma análise de representações culturais e releituras teológicas possíveis. In: ROSA, Wanderley Pereira da; BRAGA JUNIOR, Reginaldo Paranhos (org.). Religião, violências e direitos humanos. Vitória: Editora Unida, 2019.
MUSSKOPF, André S. Religião, gênero e violência na política e no espaço público. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 23, n.1, jan./jun. 2020, p. 87-99.
O POVO ONLINE. Lula fala sobre anulação de processos. Disponível em: youtube.com/watch?v=q4WZKdJJo5M
REDAÇÃO. ‘Outro aborto na história brasileira’, diz Ciro sobre Dilma Rousseff. Carta Capital, 08 de março de 2021. Disponível em: cartacapital.com.br/cartaexpressa/