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A tal da cura gay e o discurso político-religioso

A tal da cura gay e o discurso político-religioso

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Não sei se todos se lembram, mas no final do primeiro semestre de 2013 a Comissão de Direitos Humanos (CDH) aprovou um absurdo projeto de lei que tramitava desde mais de um ano e que determinava o fim da proibição, por parte do Conselho Federal de Psicologia desde 1999, de tratamentos que se propunham reverter a homossexualidade. Conhecida como “cura gay”, o projeto idealizado pelo pastor e deputado João Campos, recebeu apoios e reprovações por parte de diferentes segmentos sociais. Entre os que apoiavam essa iniciativa, estavam algumas igrejas cristãs, principalmente as neopentecostais, como a Assembleia de Deus, representada pelo então presidente da CDH, outro deputado, o pastor Marco Feliciano, e a Frente Parlamentar Evangélica, conhecida como a “bancada evangélica”. Um alívio: a proposta foi vetada pelo Congresso pouco depois das manifestações populares daquele ano, que abarcaram vários temas, desde a diminuição da tarifa dos ônibus até a recusa dos gastos com a Copa do Mundo de 2014 e a lei da cura gay.

Todos esses episódios serviram não apenas para fomentar uma discussão sobre a condição do Brasil como Estado laico e o modo como as religiões abordam assuntos como o sexo e a sexualidade, mas para rediscutir a ideia da homossexualidade.

Durante o período entre a aprovação do projeto de lei pela CDH e o veto pelo Congresso – algo que durou aproximadamente dois meses – tanto as redes sociais (Twitter e Facebook, por exemplo) como os jornais e as revistas nacionais abordaram massivamente o assunto de diversas formas, dando a voz a diferentes pessoas. Enquanto essas discussões apareciam nos meios de comunicação, membros da Frente Parlamentar Evangélica tentaram ignorar o veto do projeto de lei e trazê-lo novamente para votação, mas acabaram desistindo devido ao pouco apoio que alcançaram.

Em meio a tantas discussões sobre a relação religião-homossexualidade, a jornalista evangélica Marília de Camargo César lançou o livro “Entre a Cruz e o Arco-Íris”, no qual traça um panorama da relação dos cristãos com a homoafetividade. A autora passou dois anos fazendo entrevistas a líderes evangélicos, cristãos gays, “ex-gays”, psicólogos, filósofos, profissionais da saúde e pais de homossexuais, além de leituras sobre o assunto para constituir o texto, que aborda o tema da homossexualidade desde a Antiguidade até o então conflito entre os líderes religiosos e o ativismo LGBT. Lançado em outubro de 2013, quando ainda se discutia sobre o projeto da cura gay, o livro foi tema de vários artigos, como o da jornalista Anna Virginia Bellousier, que escreve para a Folha de São Paulo. Sob o título “Ex-gay, ex-ex-gay e a tal da ‘cura gay’”, Anna Virginia faz uma breve revisão de alguns casos que estão incluídos na obra de Marília e apresenta, também, uma entrevista à autora em um articulo de 29 de novembro do mesmo ano.

Aproveitando que se tratava de um tema atual e polêmico, principalmente pelo modo como a articulista apresentou o livro de Marília – através de resenhas sobre entrevistas de ex-gays ou ex-ex-gays selecionadas da obra, a associação com a suposta “cura gay” e uma entrevista com a autora – analisei 1ALMEIDA, Daniel Mazzaro Vilar de. Religiosamente (ex)gay: imaginarios de la (homo)sexualidad en comentarios de un artículo sobre la “cura gay”Revista del Instituto de Investigaciones Lingüísticas y Literarias Hispanoamericana (RILL), San Miguel de Tucumán (Argentina), n. 20, p. 149-169, 2015. Disponível em: http://filo.unt.edu.ar/wp-content/uploads/2017/05/rill_20.pdf. Acesso em: 05 jun. 2021. como os quinze leitores que comentaram o artigo de Bellousier representaram, em seus discursos, a sexualidade, de forma geral, e a homossexualidade, de forma específica.

Parti de três premissas de estudos do discurso. A primeira: sempre que fazemos uso da língua, combinamos o “dizer” com o “fazer”, ou seja, todo ato de linguagem é o produto da ação de seres psíquicos e sociais que são testemunhas, mais ou menos conscientes, das práticas sociais e das representações imaginárias da comunidade a que pertencem. Nesse sentido, a segunda premissa é que, no ato de linguagem, lançamos mão de saberes que nem sempre se expressam no discurso, mas são sempre necessários para sua produção e compreensão. A terceira premissa é que todo ato de linguagem é a manifestação concreta de uma intencionalidade, e no caso dos comentários deixados no artigo de Anna Virginia, a intencionalidade pode ser criticar ou elogiar o artigo ou outro comentário deixado na página, ilustrar alguma ideia proposta anteriormente etc.

Sendo os saberes um conjunto de representações coletivas que são dadas aos sujeitos pelo fato de pertencerem a uma comunidade ou a um grupo social, e por compartilhar com seus membros experiências dos mais diferentes tipos, sejam elas vividas (afetivas), racionais (intelectuais) ou tangíveis (do mundo físico), quando falamos ou escrevemos temos também a finalidade de tentar separar o que nos pertence como indivíduos daquilo que pertence à comunidade ou ao grupo. No entanto, reitero, é uma tentativa de separar, porque, como disse anteriormente, somos, consciente ou inconscientemente, testemunhas de representações imaginárias da comunidade a que pertencemos, isso quer dizer que nos constituímos por meio desses saberes – porque fazem parte das nossas identidades particulares – e os mantemos vivos na nossa comunidade – porque “fazemos” algo com esses saberes: elogiamos, criticamos, naturalizamos, culpamos…

Dessa forma, o que concluí a partir dos quinze comentários deixados no artigo “Ex-gay, ex-ex-gay e a tal da ‘cura gay’” (alguns deles estão no final deste artigo), e também de outras manifestações da linguagem, é que falar sobre a (homo)sexualidade não é apenas uma descrição “neutra”, mas é também “fazê-la”, é “(re)criá-la” mantendo saberes baseados na ideia de pecado, de livre arbítrio, de doença, de infração e de vítima. Como consequência, qualquer sexualidade – seja ela homo, hetero, bi ou qualquer outro prefixo que se queira colocar – é algo que se faz interminavelmente com a linguagem – seja ela dita ou escrita, verbal ou não. Esse eterno devir – no caso, devir homossexual – se justifica cada vez que se escreve um comentário, por exemplo, pois a escolha de argumentos para expressar o ponto de vista de um indivíduo e convencer o leitor revela somente partes de um fenômeno social e, ao mesmo tempo, acoberta outras.

Se, por um lado, há argumentos de que a homossexualidade não é compatível com algumas regras cristãs promulgadas na Bíblia, por outro lado, encontramos um ataque à própria Igreja, que mostra sua contradição. Podemos considerar essa contradição como leituras possíveis sobre o que se diz sobre a religião. Mais ainda, podemos considerar essas leituras como a própria religião. Com isso quero dizer que as verdades são construções que dependem não apenas dos contextos dos atos de linguagem, mas também dos conflitos (ou das contradições) que fazem parte dessas verdades. A mesma coisa acontece com a homossexualidade: compreendê-la significa perceber seu imaginário em um contexto, mas nunca conseguiremos fechar sua definição, não só porque os conflitos não acabam, mas porque os contextos são intermináveis.

Comentários

“Esse livro é demais comovente… amei! Estar do lado de quem sofre é um privilégio e dar-lhes mais forças e conhecimento é demais! Parabenizo a autora por esse golzão de placa!”

Embora a pessoa que escreveu este comentário não seja a favor da “cura gay”, cria uma imagem do homossexual que sofre e, mais que isso, precisa de força. Esse argumento não apenas constrói o imaginário do gay, mas também das pessoas que têm esse ponto de vista: solidário e, frequentemente, compassivo. Um dado curioso é que em 2007 o jornal espanhol El País divulgou a informação de que as escolas católicas passariam a educar na “compaixão” aos gays. O problema é que a ideia de pena ou lástima para com quem sofre desgraças leva implícita uma relação de superioridade dos que sentem compaixão frente aos sofredores.

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“Nunca existirá Igreja cristã gay ou Sinagoga gay. Ora, se toda a Bíblia e a Torá são contra a prática homossexual, ‘inventar’ uma igreja que aceite a prática é, no mínimo, nada a ver. Pode até se inventar uma igreja assim no papel, mas espiritualmente ela já nasce morta. Essas igrejas inventadas pela Lanna Holder e companhia são apenas ajuntamento de pessoas, terapia em grupo, no máximo.”

O comentador argumenta sobre o posicionamento contrário da tradição das maiores religiões a respeito da prática homossexual. Qualquer proposta que tente incluir as homossexualidades no plano espiritual das igrejas e sinagogas não é verdadeira, mas invenção de abordagens não-religiosas. Em outras palavras, a recusa às homossexualidades está na base das “verdadeiras” religiões.

“Isso é bobagem, é como um doente que não consegue se curar querer tentar vender para todo mundo que a cura não é possível. Lógico que sob o Poder de Deus e a ação do Espírito Santo há cura e transformação da sexualidade sadia.”

Nesse comentário, podemos ver a ideia de doença associada a uma sexualidade não heterossexual, esta sim “sadia”. A enfermidade, no entanto, parece estar na alma, pois a transformação e a cura estão nas ações divinas, e não médicas.

“Não há a menor possibilidade de alguma igreja cristã aceitar o homossexualismo. Não se trata de uma junta de profissionais, de psicólogos, e sim de uma junta de crentes que segue coisas escritas sei lá por quem, em uma época em que o ser humano era apenas um animal tentando sobreviver.”

O comentarista duvida da possibilidade de aceitação da homossexualidade em alguma igreja cristã devido ao fato de os crentes seguirem a Bíblia como um dogma e ignorarem as condições históricas e políticas de sua produção. Quem poderia abordar o assunto seria uma junta de profissionais, como os psicólogos.


Notas

[1] ALMEIDA, Daniel Mazzaro Vilar de. Religiosamente (ex)gay: imaginarios de la (homo)sexualidad en comentarios de un artículo sobre la “cura gay”Revista del Instituto de Investigaciones Lingüísticas y Literarias Hispanoamericana (RILL), San Miguel de Tucumán (Argentina), n. 20, p. 149-169, 2015. Disponível em: http://filo.unt.edu.ar/wp-content/uploads/2017/05/rill_20.pdf. Acesso em: 05 jun. 2021.