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A era das fake news: o enfrentamento da disseminação de desinformação entre grupos religiosos

A era das fake news: o enfrentamento da disseminação de desinformação entre grupos religiosos

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Quem frequenta os espaços midiáticos digitais certamente já se deparou com as expressões “fake news” e “pós-verdade”, fenômeno que permeia hoje, especialmente as tão populares mídias sociais e atinge o jornalismo. Estas expressões são, na verdade, termos sofisticados para dizer de uma prática muita própria do ser humano: mentiras.

Do Whatsapp ao Facebook, do Twitter ao Youtube, para citar os mais populares, o processo é simples: alguém, intencionalmente, produz e divulga uma mentira na internet, geralmente no formato de notícia para criar mais veracidade, valendo-se até mesmo de dados científicos adaptados; ela é debatida nos espaços das mídias sociais; torna-se algo reconhecido, com caráter de sabedoria e verdade; quando a mentira é questionada como algo que evidentemente não é verdadeiro há diferentes posturas, que vamos discutir adiante.

A propagação de conteúdo desinformativo que interfere em temas de interesse público tem sido destaque em estudos acadêmicos, em diferentes áreas do conhecimento, e também de organismos políticos, como a Comunidade Europeia e a Organização das Nações Unidas, e ainda de empresas de comunicação, como o Facebook. A Comissão Europeia, por exemplo, criou, em 2018, um “Plano de Ação contra Desinformação”, no qual define desinformação como: “Informação comprovadamente falsa ou enganadora que é criada, apresentada e divulgada para obter vantagens econômicas ou para enganar deliberadamente, podendo prejudicar o interesse público”.

Os episódios que envolveram a votação do Brexit, em 2016, na Grã Bretanha, os processos eleitorais dos Estados Unidos, naquele mesmo ano, e do Brasil, em 2018, têm sido objetos de análise que demonstram como a produção de desinformação interferiu prejudicialmente na formação da opinião pública e em ações políticas.

Neste contexto, emerge o lugar dos grupos religiosos, com destaque para os cristãos conservadores. Amplas parcelas deste segmento não só tiveram papel importante na dinâmica que levou à vitória de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, como revelaram-se receptores e propagadores de fake news que alimentaram estas disputas.

Por que as mentiras se espalham?

Que alguém crie uma desinformação (mentiras, conteúdo enganoso ou impreciso que leve a conclusões precipitadas sobre fato ou personagem) é elemento de fácil compreensão do ponto de vista de ser algo deliberado para a busca de vantagem econômica ou política chegando a prejudicar o interesse público.

Porém, uma das maiores questões que envolvem este fenômeno dos nossos tempos é: por que as pessoas acreditam e ainda ajudam a divulgar e a consolidar as mentiras da internet? Uma das respostas está na Psicologia Social: ainda que constatem que acreditaram numa mentira, pessoas não abrem mão dela pois ela é coerente com seu jeito de pensar, de agir, de estar no mundo, ou lhe traz alguma compensação, conforto. Isto é o que se chama “dissonância cognitiva”. Ela acontece quando pessoas têm necessidade de estabelecer uma coerência entre suas cognições (seus conhecimentos, suas opiniões, suas crenças), que acreditam ser o certo, com o que se apresenta como opção de comportamento ou de pensamento. Para superar a dissonância, e buscar consonância, há duas atitudes: aceitar o que está sendo oferecido e refletir no que deve ser mudado ou rejeitar a opção em nome do que pensam ser “o certo”.

E é aqui que se situa a perspectiva da religião e como os grupos religiosos, especificamente os conservadores, estão propensos não só a assimilar as notícias e ideias mentirosas que circulam pela internet, coerentes com suas crenças, como também a fazer a propagação, a “evangelização”, espalhando estas notícias e ideias para que convertam pessoas ao mesmo propósito.

Não são apenas conservadores que propagam mentiras. Como dito acima, a disseminação de falsidades ocorre entre diferentes grupos ideológicos, intensificando polarizações. No entanto, grupos cristãos conservadores parecem ser os mais propensos à propagação, por conta de maior exposição à “dissonância cognitiva”. Tais grupos são interpelados pelas transformações sociais e políticas que colocam em xeque boa parte de suas convicções alimentadas por uma leitura descontextualizada da fé, e, consequentemente, do mundo.

Fake news e fundamentalismos

O extremismo conservador das campanhas de Donald Trump e Jair Bolsonaro, citadas neste artigo, teceu raízes religiosas vinculadas ao fundamentalismo, movimento cristão reacionário do início do século XX.

O fundamentalismo religioso surgiu nos primórdios do século XX, entre protestantes dos EUA, como uma reação contra os valores da modernidade iluminista e humanista, que colocaram em xeque a centralidade do Cristianismo na cultura ocidental, provocando o processo de secularização. Este clima social promoveu também o diálogo da teologia com as ciências humanas e sociais e o surgimento das ciências bíblicas e da teologia liberal, elementos inaceitáveis para os defensores dos fundamentos da fé pela revelação do texto sagrado literal.

Característica comum deste posicionamento religioso é a revelação como princípio estruturante da organização da sociedade em todas as suas dimensões. A revelação é ligada à escritura, à Bíblia, onde se encontram os fundamentos da fé, cuja leitura deve ser feita por meio de interpretação literal, sem mediação, como base para a organização da vida social e política.

Estes fundamentos da fé promovem a construção de toda compreensão da vida com base em dualismos: bem-mal, certo-errado, pecado-salvação, sagrado-mundano. E com isto se estabelece fronteiras religiosas em relação do que deve ser apoiado e praticado e o que deve ser abandonado e recusado. Tendo como âncora a defesa do mito da civilização cristã ocidental, corporificada na cultura dos países protestantes dominantes, o fundamentalismo evangélico pleiteia para si o cristianismo verdadeiro recusando o diálogo ecumênico.

Em diferentes épocas e lugares, o fundamentalismo ganha novas formas sem deixar de manter estas bases atreladas à sua vocação de reação ao novo e à contextualização. É neste sentido que, de um modo geral, evangélicos fundamentalistas reagem à modernidade representada nas novas formas de família, à educação sexual e à autonomia das mulheres sobre seu próprio corpo, principalmente na questão do aborto, que são avaliadas como práticas contrárias aos valores cristãos contidos nas escrituras sagradas. Com isso advogam a defesa da família tradicional, formada por marido, mulher e filhos e a autoridade do homem como chefe desta família. Alguns grupos defendem ainda o ensino da Bíblia nas escolas, especialmente na oposição à negação das ciências à ação de Deus no mundo (Criacionismo x Evolucionismo, por exemplo).

O fundamentalismo e seus valores pela verdade, pela família, questionadores da ciência e da imprensa, adquiriu, nos anos 1980, contornos de uma religiosidade partidária, com a Maioria Moral nos EUA, se refez nas eleições presidenciais de 2016, e ganhou versão brasileira, 40 anos depois, com o bolsonarismo. No Brasil, as novas expressões fundamentalistas emergem como reação às transformações socioculturais que o país tem experimentado, em especial a partir dos anos 2002, com a abertura e a potencialização de políticas voltadas para direitos humanos e gênero.

São novas por conta da forma como as lideranças evangélicas que as defendem se apresentam: como pertencentes aos novos tempos, em que a religião interage o mercado, as mídias e as tecnologias – mas que se revelam defensoras de princípios fundamentalistas, com discursos de rigidez moral, visando à conquista de poder no espaço público.

Estudos empíricos nos EUA têm estabelecido a conexão entre a recepção e a propagação de desinformação com o imaginário de cristãos fundamentalistas. O pesquisador de Literatura Americana e Religião da Universidade de Victoria (Inglaterra) Christopher Douglas, por exemplo, indica que a cultura fundamentalista de: 1) negação da ciência (especialmente da teoria da evolução e da leitura contextual da Bíblia) e desqualificação da informação pelas mídias;  2) criação de fontes alternativas para conhecimento e informação: suas próprias universidades, museus e mídias; 3) formação cognitiva para rejeitar conhecimento especializado e buscar alternativa – geração de incapacidade de pensamento e análise críticos, é base para que fake news se espalhe facilmente entre cristãos conservadores.

Isto ganha força, no espaço público, segundo Douglas, para além da religião, com o fortalecimento de uma religiosidade partidária entre fiéis (afinidade eletiva com a direita política) e uma aproximação aos extremismos conservadores.

“Ideologia de gênero”: exemplo marcante

Um exemplo marca de conteúdo falso disseminado por cristãos conservadores é a chamada “ideologia de gênero”. Esta pode ser classificada como a mais bem sucedida concepção falsa criada no âmbito religioso.

Surgida no ambiente católico e abraçado por grupos evangélicos distintos, o termo trata de forma pejorativa a categoria científica “gênero” e as ações distintas por justiça de gênero, atrelando-as ao termo “ideologia”, no sentido banalizado de “ideia que manipula, que cria ilusão”. A “ideologia de gênero” nesta lógica, é apresentada como uma técnica “marxista”, utilizada por grupos de esquerda, com vistas à destruição da “família tradicional”.

É fato que qualquer tema que traga o assunto “sexo” e “sexualidade” mexe com o imaginário dos cristãos e provoca muitas emoções. É de se considerar também que nos últimos anos, o contexto político brasileiro ressuscitou e realimentou o velho temor do comunismo e do marxismo. Como a maioria das pessoas nunca leu uma linha das teorias de Karl Marx, passa a acreditar nos irmãos de fé que falam de novas técnicas de escravização de mentes desenvolvidas por um “marxismo cultural”.

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É fato ainda que os avanços nas políticas que garantem mais direitos às mulheres e às pessoas LGBTI+, e ainda participação delas no espaço público, causam desconforto às convicções e crenças de grupos que defendem, por meio de leituras religiosas, a submissão das mulheres e a cura dos LGBTI+.

Por isso, para estes grupos, de nada adianta o trabalho das agências de pesquisa e dos sites que promove a checagem de informações. São vãos os esforços que interlocutores, pacientemente, tentem mostrar que o que se divulga é mentira. Isto porque, como indicado neste artigo, o que sustenta este processo de crença nas mentiras não é apenas a ignorância mas o fato de que as pessoas acreditam no que escolhem acreditar.

Quando um grupo se identifica com mentiras, mesmo que elas sejam demolidas em nome da ética e da justiça, permanece com elas e as defende de qualquer jeito. Não importa que seja mentira mas sim a ideia contida, a falsidade não é apagada dos espaços virtuais e continua ainda a ser reproduzida. E mais:  aquele que desmascarou a notícia ou a ideia, que pode ser um familiar, amigo ou irmão na fé, chega a ser objeto de desqualificação e rancor.

Em busca de superação

Preocupada com a intensa propagação de conteúdos caracterizados como desinformação em espaços de mídias religiosas, a organização Paz e Esperança Brasil, tomou a iniciativa, em 2019, de articular jornalistas e voluntários interessados no tema para o desenvolvimento de uma ação específica. O grupo se reuniu e criou o Coletivo Bereia que atua por meio do site Bereia, dedicado à checagem de notícias e produção de conteúdo com foco em religião.

O nome Bereia é simbólico para cristãos. Faz referência a uma cidade grega, localizada na região da Macedônia, citada no livro da Bíblia dos Atos dos Apóstolos, no Novo Testamento. O texto registra um elogio aos judeus de Bereia, que participavam das reuniões promovidas por cristãos, não apenas por sua abertura para ouvir os novos ensinamentos. Os bereanos foram reconhecidos porque, eles mesmos, examinavam as Escrituras, diariamente, para verificar se o que o apóstolo Paulo e seus companheiros diziam estava correto.

O Coletivo afirma ter consciência de que são muitas as várias iniciativas de agências, sites e coletivos que prestam serviços de verificação diante da realidade tão desafiadora da propagação intensa de desinformação. No entanto, Bereia oferece uma especialidade ainda não desenvolvida por outro grupo: a checagem de notícias veiculadas nos espaços de mídias e lideranças religiosas, que têm o público cristão como alvo. O Coletivo atua ainda na verificação dos pronunciamentos dos políticos que se identificam como religiosos e que estão tão em evidência no cenário político hoje.

A equipe do Bereia, formada por jornalistas, estudantes de comunicação e outros voluntários interessados na busca de superação da desinformação, acompanha, diariamente, mídias de notícias cristãs e pronunciamentos e declarações de políticos e autoridades cristãs de expressão nacional, veiculados pelas mídias noticiosas e pelas mídias sociais. É verificado se os conteúdos propagados são informativos (verdadeiros) ou desinformativos (imprecisos, enganosos, inconclusivos ou falsos).

O site pode ser acessado no link coletivobereia.com.br. Nas mídias sociais Facebook, Twitter e Instagram: @coletivobereia. Informações pelo e-mail: coletivobereia@gmail.com.

Bereia é apoiado pelas organizações Agência Latino Americana e Caribenha de Comunicação (ALC); Associação Católica de Comunicação – Brasil (SIGNIS); Associação Mundial para a Comunicação Cristã – América Latina (WACC-AL, na sigla em inglês); Grupo de Pesquisa Comunicação e Religião da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (GP Comunicação e Religião – Intercom); e Paz e Esperança Brasil.

O Coletivo declara estar atento ao alerta do Reformador Protestante Martinho Lutero: “Somos por natureza propensos a acreditar em mentiras, em vez de verdades. Uma mentira é como uma bola de neve; quanto mais roda, maior se torna” (extraído de Conversas à mesa [Table Talk], entre 1531 e 1544). Por isso, atua para reformar a informação que circula nos espaços cristãos para haver fidelidade à verdade no enfrentamento da mentira e do engano.