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A interseccionalidade como ferramenta potente no combate ao racismo religioso

A interseccionalidade como ferramenta potente no combate ao racismo religioso

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Ao iniciar este texto, lembrei-me instantaneamente da frase proferida certa vez por Mãe Stella de Oxossi: “A fé é a maior liberdade que o ser humano possui.” Não apenas pela importância da fala dentro da procedência de tratarmos do assunto do combate ao racismo religioso, mas por sua autora se tratar de uma mulher negra na posição de liderança religiosa. A cosmologia e organização social presente em religiões de matrizes africanas como o Candomblé possibilita que mulheres ocupem a posição de liderança, como foi o caso de Mãe Stella, quinta Iyalorixá – Mãe de Santo – do Ilê Axé Opô Afonjá, famoso e tradicional terreiro presente na Bahia. A Sacerdotisa partiu para o Orun recentemente, em 2018, mas nos deixou indagações e ensinamentos.

Mas, ao visualizarmos a estrutura social maior, para além da organização interna dos terreiros, quais seriam os significados da existência de mulheres negras na linha de frente dessas religiosidades na contemporaneidade? Em um dos países que teve as bases de seu enriquecimento produtivo, no passado, às custas do uso da mão-de-obra escrava, que em decorrência disso e outros fatores vive ainda a triste faceta do racismo contemporâneo, e que ao mesmo tempo convive com as mazelas do machismo, sendo o quinto país a obter o maior número de crimes de feminicídio nos últimos anos: quais os efeitos da presença feminina e negra em eixos religiosos e, consequentemente, na luta antirracista e antissexista, em face dos problemas citados?

Em obras como “Mulheres, Raça e Classe”, Angela Davis pontua que devemos visualizar gênero, raça e classe como categorias cruzadas, sem assumir a primazia de uma sobre a outra. Nesse sentido, devemos entender que a raiz do problema está na base de exploração capitalista, que se alimenta desses tipos de opressões e desigualdades para sua manutenção. O racismo e o sexismo encontram ali sua forma mais ágil de sobrevivência, podendo se expressar de variadas maneiras. Desta forma, o preconceito contra religiões de matrizes africanas surge como uma das facetas dessa segregação racista. Já que a teoria interseccional pressupõe o cruzamento das categorias de análise expostas anteriormente, ao lutarmos contra a opressão sobre mulheres negras – que se se encontram na base de hierarquias da pirâmide social – estamos também lutando contra outros aspectos ligados ao espoco do preconceito racial. Para Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda estrutura da sociedade se movimenta com ela”.

A presença de figuras negras e femininas nestes nichos religiosos pressupõe ainda uma representação política. Ao lidar especificamente com essas organizações, essas mulheres lidam com a administração de tarefas, guiam os filhos de Santo que fazem parte daquela casa, auxiliam espiritualmente as pessoas que buscam ajuda nesses locais, tornando-se assim, espécies de líderes comunitárias. Minha trajetória como mulher negra e historiadora me levam hoje a defender a ideia de que participação política expande os limites dos gabinetes, expressando-se em outros âmbitos sociais. Assim, podemos notar a presença política na atuação diária dessas líderes religiosas, mesmo que não necessariamente em grupos formais, movimentos sociais institucionalizados ou partidos políticos.

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Ainda assim, podemos encontrar lideranças religiosas e culturais femininas que se posicionam firmemente frente à luta pelos direitos humanos. Podemos citar como exemplo Mãe Beata de Iemanjá, que tornou durante longos tempos seu terreiro em Nova Iguaçu (RJ) um local de combate à intolerância (lembrando que casas de Umbanda e Candomblé presentes na Baixada Fluminense sofreram uma grave onda de ataques advindos do tráfico, recentemente). Já no interior, podemos citar Pedrina de Lourdes, Capitã da Guarda de Massambique de Nossa Senhora das Mercês de Oliveira, na cidade de mesmo nome em Minas Gerais, que além do referido Terno de Congada atua em outros nichos religiosos, intelectuais e políticos no estado. Pedrina ainda é atualmente reconhecida como Mestra dos Saberes Tradicionais, pela UFMG. Essas e outras inúmeras mulheres auxiliam no combate e na ação antirracista de variadas formas, colaborando assim para o fim da opressão machista e do racismo em diversos âmbitos, como o religioso.

Entender que essas opressões estão interligadas e notar a potência de ação de mulheres negras para uma construção social mais democrática é levar em consideração, assim, a relevância da presença da luta interseccional para a consolidação de liberdades religiosas. Para tal, é importante historicizar as trajetórias dessas diversas personagens e entender como o racismo se constrói e se remodela diariamente na sociedade brasileira, expandindo-se para múltiplos eixos, como o das religiões. Afinal, não é por acaso que manifestações espirituais oriundas de raízes afro-brasileiras sofram tanta perseguição: as vítimas aqui possuem cor. Ainda que tenhamos vivido avanços nos últimos anos, é necessário compreendermos a luta antirracista e antissexista como um desafio entrelaçado, que surge a partir de um inimigo em comum, os preconceitos insurgidos da exploração social. Mas também de um mesmo propósito: a luta anticapitalista tendo como viés a busca por direitos humanos e raça, gênero e classe como categorias de primazia e importância.