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O que significa templos religiosos como serviço essencial?

O que significa templos religiosos como serviço essencial?

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O título desse ensaio é isento de modéstia. Querer interpretar a razão da abertura de templos religiosos como serviço essencial durante a pandemia da Covid-19 – que, no Brasil, extrapola números de mortos a cada dia – pode ser um prato cheio para críticos de plantão. Todavia, acompanhado das declarações de Marx, de que a “religião é o suspiro da criatura oprimida”, mas também é “o ópio do povo”, buscarei lançar luz sobre o que é óbvio. Não que esteja tão aparente o óbvio, pois se o óbvio estivesse tão declaradamente sobre a mesa, não precisaríamos discutir tal questão.

E o que é óbvio?

Que a religião, embora de todas as instituições seja a que leva mais tempo para perceber as transformações sociais, avança através das novas estruturas. A palavra “avança” não significa amadurecimento, ou desprendimento de algo danoso, e sim, algo que perdura, insiste, teima, ainda que ressignificando estrategicamente conceitos, performances e seu ethos.

Para que a questão acima não fique sem resposta, é preciso separar a pergunta em dois polos. O que é óbvio? Primeiro: a religião é um produto do ser humano (Marx toma essa ideia de L. Feuerbach). Segundo: a religião é um sintoma que acompanha as estruturas de seu tempo. Enquanto a religião busca oferecer respostas a partir de perspectiva sobrenatural, ela é, e neste caso trato especificamente do cristianismo, influenciada diretamente pela sociedade capitalista.

Antes de abordar a razão (óbvia!) a que me atrevo destacar aqui, nada mais justo que transcrever o trecho em que Marx faz as declarações já adiantadas acima. As frases fazem parte da introdução do livro “Crítica da Filosofia de Hegel” (Boitempo, 2005, p. 147). Segue:

É este o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d’honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base gral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A supressão da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, em germe, a crítica do vale de lágrimas, cuja auréola é a religião.

Marx escreveu a “Crítica da filosofia de Hegel” ainda muito jovem. A época em que se debruçou para desenvolver a Introdução ocorreu no final do ano de 1843 até o início de 1844, ou seja após o livro já ter sido escrito. Este é um material em que o autor inicia sua reflexão sobre a Prússia. Compara a situação da Alemanha com a Inglaterra e a França, cujas revoluções tiveram como desdobramento a ascensão da burguesia. E no século XIX, Marx percebeu que os discursos religiosos eram utilizados na Alemanha, dentre outros países, como uma espécie de megafone da burguesia (a religião institucionalizada sempre esteve à serviço de determinado grupo que detinha o poder; e para manter esse poder, a religião, sem sombra de dúvidas, foi e é um canal de dominação e doutrinação política).

A pergunta central é: qual o papel da religião na sociedade? Para Marx, a religião é um sintoma. Ela tem importância, mas é sintoma. A religião não é o problema central da sociedade. Por isso, o autor não a terá como centro de suas argumentações e críticas. Dos clássicos, Marx é o que menos fala sobre religião. Portanto, o papel da religião seria apresentar respostas aos seus fiéis. Aqui mora o perigo.

Em um cenário onde mulheres e crianças chegavam a trabalhar de 12 a 14 horas por dia em lugares, por vezes, insalubres, em que a única coisa que o proletariado possuía era a força de seu trabalho, e para sobreviver, a vende por qualquer preço gerando mais valor para o empregador e sendo cada vez mais alienado diante de sua produção, a religião era (e é), portanto, um lugar para que essas pessoas possa desaguar seus sofrimentos. A religião é o suspiro da criatura oprimida. É lá que o sujeito terá a quietude após longas jornadas de trabalho. É lá que se buscará consolo frente toda a desgraça anunciada. É lá que grupos assalariados buscarão força e motivação para continuarem após verem seus filhos morrerem de fome e não terem respostas concretas para suas demandas. É lá, justamente lá, que encontrarão respostas. Essas respostas têm o poder de dominar consciências. Embora sejam ópio, lenitivo, bálsamo diante de uma sociedade capitalista e catastrófica, é também uma narcotização na vida dessas pessoas de modo que já não conseguem entender a realidade tal como ela é.

O ópio mente. O ópio não permite que o sujeito que busca respostas na religião consiga reunir outros para devidas transformações, para revoluções robustas, estruturais. O ópio esconde a realidade porque a realidade é horrenda. Sem o ópio, como viver?

Sem os templos abertos, como viver o oprimido?

Sem os templos abertos, o que será dos opressores?

Os templos são lugares onde fiéis buscam, por causa de todo um arcabouço hermenêutico bíblico e de sua tradição religiosa (mais da tradição e quase nada de bíblico) refletir sobre suas vidas através de um mundo invertido. Rituais, cerimônias, figurinos, músicas, cores, odores… são elementos-chave para a manutenção do status quo. Não apenas manutenção no sentido de preservação, mas também, e o que é pior, de conformação. “A vida é assim porque Deus quer”; “Deus permitiu a pandemia com um propósito”; “Deus criou uns assim, outros assado…”…

Grande parte dos líderes religiosos não quer apenas preservar, quer fazer com que sua comunidade seja uma comunidade de conformados. Quaisquer discursos sobre “não conformidade” é para conformar. Os templos abertos aparentam ser o lugar do suspiro. Não é. Não há ar nem fora, nem dentro. Há gente morrendo e sendo morta.

Templos abertos querem dizer: “estamos preocupados em cuidar de gente, em ouvir gente, em remediar as feridas da alma humana…”. Engodo! Placebo! Alienação!, é o que diria Marx. E se ele não diz porque está morto, eu digo: “Engodo! Placebo! Alienação!”.

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E por que mais os templos são serviços essenciais?

Quem decide isso não são os líderes religiosos. É assunto para ser tratado no campo da política. E daí, políticos como são os políticos, precisam agradar a esfera sagrada como garantia de apoio. Não podem fazer isso com todos os comércios, por incrível que pareça, mas com as igrejas, sim. Dória já assinou decreto reconhecendo igrejas como serviço essencial em São Paulo; Wladimir Garotinho também o fez na maior cidade do interior do estado do Rio de Janeiro; a bancada cristã da Câmara do Recife aprovou medida que inclui igrejas como serviço essencial; após sanção do prefeito Sarto, Fortaleza agora tem as atividades das igrejas como serviços essenciais; e sem contar com as articulações de deputados e senadores ligados à Frente Parlamentar Evangélica. Há um ano, início dos protocolos sanitários contra o vírus, o próprio presidente Jair Messias já declarava que as igrejas eram um serviço essencial. Pudera!, muitos evangélicos (dentre eles alguns parlamentares) estavam em sua jugular.

A religião vive sob a atuação de uma estrutura: o capitalismo. Por mais que a religião apresente forte influência na política, ela está dentro desse sistema. As mais de 280 mil vítimas da pandemia não são suficientes para que os templos, lugares essenciais para preservação e conformidade da massa, fiquem fechados. Essas igrejas estão lavando as mãos no sangue desses mortos e de seus familiares que, embora vivos, morreram um pouco mais.

As igrejas demonstram de maneira absurda e escandalosa que não são apenas produtos de seres humanos. Elas são produto de seres humanos que estão sob estruturas sociais. E a razão de tudo isso não é outra senão o capital. A religião é um sintoma do capitalismo. Ela precisa, portanto, mesmo diante de uma pandemia, manter suas portas abertas. Ainda que seus umbrais sejam encharcados de sangue inocente. As igrejas abertas têm sido um termômetro para entendermos não apenas o quanto o povo brasileiro sofre, é também um indicativo do quanto essa gente encontra-se aprisionada confortavelmente. O sentimento religioso revela a dor do nosso tempo, mas é um sintoma.

Os fiéis precisam(?) de reuniões de oração para clamarem por seus doentes, mas desprezam a revolução (transformação) político-social na esfera da saúde. Essa gente luta pelo quê? Esses templos, quando utilizados meramente para manutenção ritualística e de conformismo, são essenciais em quê? Em quê?

Note: quando Marx critica a religião, critica-a por tabela. O centro é o sofrimento do lado de fora dos templos. Do lado de dentro, os discursos religiosos apenas mentem sobre a realidade. E isso, conservadores ou progressistas. Ambos fazem o mesmíssimo trabalho através da religião. Mentem. Fantasiam a realidade.

Contudo, a razão desses templos serem decretados serviços essenciais não passa por outro caminho. Mamon venceu a vida! Quem sabe uma ponta de esperança para a ressurreição? Que Marx não escuta essa blasfêmia!