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O Pastor Müntzer como Metáfora do Profeta Daniel: o Pensamento da Reforma Campesina Radical no Século XVI à Luz da Micro-História

O Pastor Müntzer como Metáfora do Profeta Daniel: o Pensamento da Reforma Campesina Radical no Século XVI à Luz da Micro-História

[spb_image image=”482″ image_size=”full” frame=”noframe” caption=”Thomas-Müntzer-Denkmal in Mühlhausen, Thüringen. (Foto: EKD / EPD)” caption_pos=”below” remove_rounded=”yes” fullwidth=”no” overflow_mode=”none” link_target=”_self” lightbox=”no” intro_animation=”none” animation_delay=”200″ width=”1/1″ el_position=”first last”][/spb_image] [spb_text_block animation=”none” animation_delay=”0″ simplified_controls=”yes” custom_css_percentage=”no” padding_vertical=”0″ padding_horizontal=”0″ margin_vertical=”0″ custom_css=”margin-top: 0px;margin-bottom: 0px;” border_size=”0″ border_styling_global=”default” width=”1/1″ el_position=”first last”]

O interesse em recuperar personagens reais da história não carecia de inclinação objetiva, delimitada, visto que os elementos participantes se davam em contribuições de setores políticos, econômicos, de intenções distintas nos campos de trabalho e nas demais categorias que estruturam a sociedade, como o Estado e, em alguns casos, a religião oficial do país. Em outras palavras, uma Macro História.  

Na literatura, por exemplo, personagens podem ser interpretadas como coletivos. Isso é muito comum em obras sagradas: personagens “sem nome” ou nomeadas através de sua região, ofício etc. representam grupos que a autora ou autor querem destacar. A alegoria transborda nesses textos sagrados. Contudo, as gerações foram perdendo as reais intenções das autoras e autores; com isso, textos e histórias foram se dignificando através de reinterpretações de acordo com outros ambientes. Estes mesmos ambientes textuais gestavam novamente textos que haviam sido confeccionados sob outros aspectos sócio-políticos. E ainda assim, a interpretação da história se dava a partir de uma tessitura macroestrutural.

Lutero e Müntzer eram colegas. Em Zwickau, Müntzer afastou-se dos ensinos de Lutero. As contendas o levaram a Praga. Em 1523 tornou-se pastor de Allstedt, onde atraía príncipes, multidões, e, inclusive, Lutero, para ouvir suas pregações.  Em suas mensagens, ameaçava os príncipes católicos deixando claro que não reconhecia suas autoridades. A crítica deste teólogo era evidente: por um lado, vendo-se como mensageiro de Deus, denunciava o poder opressor; por outro lado, achava que os reformadores de sua época estavam mais ligados à letra das Escrituras do que sensíveis ao Espírito. Para Lutero, por exemplo, a igreja era mantida por indivíduos, mas a partir das Escrituras. A pregação da Palavra deveria levar o fiel a vivenciá-la em todos os setores da vida. Por outro lado, Müntzer seguia as indicações literárias de Lutero, como as obras de João Tauler, Henrique Seuse e de outros místicos alemães. Neste sentido, acreditava que Deus lançava seus amigos à escuridão da noite para depois experimentarem a luz do sol. Ou seja, a experiência era uma chave (mais profícua que a própria Escritura) para a participação no mundo. Além disso, era influenciado pelo movimento dos anabatistas e taboritas (herdeiros de John Huss); acreditava ser aquele o tempo do Espírito, onde, através de sua iluminação, estabeleceriam uma sociedade sem classes, sem propriedade privada, assim como em Jerusalém, ainda que isso os levassem à luta armada. Esta é a imagem da igreja de Müntzer. 

Diante do movimento criado por este teólogo, Frederico, o Sábio, da Saxônia, enviara seu irmão João, o Constante, para ouvir o sermão de Müntzer. A teologia da personagem em tela baseava-se em Daniel 2. Seu sermão metaforizava as condições apocalípticas do texto para o cenário em que se via lutando contra as forças opressoras de tal maneira que o próprio pregador era Daniel. O Daniel que enfrentava os impérios e toda a sorte de opressores. No livro, Daniel é a imagem do servo fiel que deveria motivar o coletivo de Israel no séc. II a.e.c. a tornar-se como o tal. Enquanto Lutero pregava submissão aos governantes, Müntzer pregava uma reforma radical frente ao “império”

O livro de Daniel trata-se de um gênero apocalíptico. São pelo menos três as características: a) opressão política (limitando liberdade); b) exploração econômica (restringindo recursos); c) vigilância ideológica (que busca conter a consciência crítica da classe “dominada”). Ele é escrito no século II a.e.c., mas ambientado no séc. VI. O capítulo 2 relata do sonho de Nabucodonor (imagem do império: Antíoco IV Epífanes). Seu sonho fala de uma imagem, figuração da idolatria. Enquanto Javé simboliza a libertação, a imagem remonta a escravidão. O profeta Daniel é o único capaz de interpretar o sonho do rei. A imagem, composta por partes diferentes, trazia a seguinte mensagem: a) a cabeça de ouro: império babilônico; o peito e os braços de prata: império medo; o ventre e as coxas de bronze: império persa; os pés de ferro e de argila: império grego com Lágidas e Selêucidas. Uma pedra lançada por mão invisível faria com que a imagem se transformasse num monte de pó.

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Müntzer separa seu sermão em 4 partes. Na primeira, destaca que a história da igreja se deteriorou desde o seu início, em que demonstrava o ideal. Na imagem do pregador, Cristo e seus discípulos deram início a um ideal puro, mas seus seguidores acabaram manchando-o. A pedra lançada sobre a imagem é o Espírito de Cristo, mas foi retida pelos príncipes. O mundo dilacerado é a igreja e o Estado. Müntzer apela aos seus ouvintes: 

 […] devemos ressurgir desta imundície e ser [sic] verdadeiros discípulos de Deus, ensinados por Deus… E assim necessitaremos de uma grande e poderosa força que nos será dada de cima, para castigar e debilitar a esta indizível maldade. Deve-se usar mão poderosa contra os inimigos de Deus. (YODER, 1976, p. 102) 

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Müntzer continua dando ênfase à adulteração feita sobre a “pedra”. Agora, denuncia um novo grupo: os escribas luteranos. Sua crítica se dava pelo fato de que muitos estavam sendo enganados pelos “escribas ímpios” que ensinavam e diziam claramente “que Deus já não revela seus segredos divinos a seus queridos amigos, por meio de visões verdadeiras ou de sua palavra audível […] e fazem objeto de burla os homens que se ocupam com a revelação” (YODER, 1976, p. 103). Lutero e todos os seus ajudantes eram vistos como os sábios de Nabucodonosor que não souberam dar as devidas interpretações ao rei por não serem servos de Deus: “Não tinham fé em Deus; eram ímpios, hipócritas e aduladores que diziam o que seus senhores queriam ouvir, como os escribas de nossa época que gostam de comer delicados manjares na corte” (YODER, 1976, p. 105). 

No terceiro ponto, declarou que ninguém poderia dizer algo profundo acerca de Deus se não tivesse sensibilidade para ouvi-lo no “abismo da alma”. Sublinhava ainda que, mesmo uma pessoa engolindo cem mil bíblias, não teria condições de discernir a vontade divina, pois a Palavra é percebida no “impulso” dado ao coração. Esse “impulso” sagrado ajudaria o ser humano a refrear os apetites carnais etc. (YODER, 1976, p. 107). 

No centro de sua pregação, fará sua aplicação político-revolucionária reunindo sua teologia do Espírito com sua percepção do cenário histórico presente. Todavia, a visão do pregador não era apenas social, mas, sobretudo, religiosa. Seu chamado à revolução estava baseado na seguinte finalidade: a partir da eliminação da riqueza, da glória, do poder, o ser humano cobrará sua consciência de que “é morada de Deus e do Espírito Santo por toda sua vida, mais ainda, que realmente só foi criado para inquirir os testemunhos de Deus em sua própria vida” (YODER, 1976, p. 108). O alvo de sua revolução, diante da exposição de Daniel 2, era levar o humano à sua finalidade: uma vida em Deus. E a revolução política daria condições para a redenção do mal, visto que a transformação externa fomentaria transformação interna. 

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Pode-se perceber que a pregação de Müntzer motiva seus ouvintes a uma revolução social, embora sua finalidade seja religiosa. Após a publicação de sua mensagem, a separação de Lutero foi inevitável. Ao viajar para o sul da Alemanha, Müntzer fez várias publicações e contatos com camponeses e, em fevereiro de 1525, retornou para a cidade de Mühlhausen, onde tornou-se pastor. Sua vinda era convicta: o novo Daniel, o profeta do juízo – aquele que julgaria os impérios. Tornou-se uma grande referência para os camponeses de Turíngia.

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As ações principais dos camponeses eram a destruição de castelos, obter alimentos e justiça na distribuição de terras – que haviam sido tomadas pela nobreza. Na batalha contra os “ímpios”, Müntzer liderou cerca de 5 mil camponeses. Levaram 8 canhões sem munição e uma bandeira branca com a imagem de um arco-íris, representando a aliança de Deus com seu povo. Caso o pastor se entregasse, não haveria nenhuma batalha, mas sob nova e inflamada pregação, todos seguiam e cantavam “veni sanctus spiritus”. Das tropas reais, 6 soldados foram mortos; dos que seguiam a voz revolucionária doprofeta, 5 mil. Aprisionaram, torturaram e decapitaram Müntzer em 27 de maio de 1525. Antes de morrer, ainda exortava aos príncipes a leremlibros Regum(livro dos Reis), pois continha neles a inclinação de Deus para os injustiçados diante da corte. Além disso, a derrota dos camponeses não era para ser interpretada como a legitimação dada por Deus ao “governo ímpio”.

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A partir do sermão de Daniel 2, há muitos outros desdobramentos da história que precisaríamos de mais espaço para refletir. Talvez, as observações mais sensíveis que se pode destacar dessa breve exposição caibam em três hipóteses: a) que a releitura de um texto sagrado e sua ressignificação para o empoderamento de um humano e, consequentemente, de todo um grupo de seguidores, torna possível compreender a estrutura sócio-política da época; b) que o impacto das experiências religiosas também são produto de seu tempo e, por isso, sofrem diretamente influências da cultura; c) que a fé no ambiente dos injustiçados se destacará ou como uma razão para subsistir ou para resistir e lutar, ainda que desarmados.

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Referências

BLOCH, Ernest. Thomas Müntzer: o teólogo da revolução. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1973.
BURKE, Peter. A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista, 1991.
__________. O que é história cultural? 2ªed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
DREHER, Martin. O profeta Thomas Müntzer. Thomas Müntzer, um profeta? Revista Estudos Teológicos, v.22, n.3, 1982, p. 195-214.
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LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. RJ: Civilização Brasileira, 2000.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
__________. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
YODER, John (org.). Textos escogidos de la reforma radical. Buenos Aires: Ed. La Aurora, 1976, p. 99-116.
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