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Uma confissão de fé

Uma confissão de fé

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Em 9 de julho de 2022 eu fui submetido a um Concílio na Igreja Batista Nazareth, em Salvador – Bahia, tendo em vista a Consagração ao Ministério Pastoral. Do ponto de vista da prática eclesiástica, o Concílio tem como objetivo avaliar compreensões e posicionamentos da candidata ou do candidato ao Ministério e, a partir da avaliação realizada por uma banca examinadora constituída para esse fim, determinar se ela ou ele está apta ou apto para a Consagração.

A seguir apresento meus posicionamentos relatados por ocasião do Concílio. Ainda que se trate de um conjunto de crenças e valores professados num contexto religioso, entendo que reflita a caminhada que fiz ao longo da vida e que foi sendo tecida nos encontros com diferentes pessoas, contextos, linguagens e experiências. Por isso, compartilho não apenas como uma confissão de fé pessoal, mas como uma possibilidade de pensar a religião, especialmente no âmbito do cristianismo, na sua relação com diversos temas e questões que nos convocam na atualidade e, no meu caso particular, das questões de diversidade sexual e de gênero.

Memorial de fé e vocação

Eu acredito que fé e vocação são duas expressões de uma mesma experiência que é vivenciada de formas diferentes em diferentes momentos da vida e que se constituem como elementos fundamentais de como eu me compreendo e como eu atuo no meu cotidiano. Não podem ser medidas ou certificadas por autoridades externas pretensamente superiores, mas são validadas e potencializadas em comunidade, na luta por justiça em seu sentido mais amplo de relações amorosas e respeitosas com tudo que existe e vive. Não se apresentam como certezas absolutas ou inquebrantáveis, mas são acompanhadas de dúvidas e incertezas que requerem reflexão e trabalho conjunto de discernimento, reorientação e renovação de compromisso. Fé e vocação se manifestam em meio às ambiguidades que marcam nossa existência no mundo e são vivenciadas em meio à mistura que constitui a experiência humana em suas múltiplas dimensões e formas de expressão.

Na minha trajetória pessoal e comunitária é difícil identificar um momento inaugurador no qual a fé foi despertada e a vocação foi sentida. Minhas crenças foram sendo constituídas nos meus contextos de formação na infância, na adolescência, na juventude e na vida adulta. Isso inclui elementos étnicos muito fortes de uma vivência cultural e religiosa marcada pelos processos de migração europeia da segunda metade do século XIX para o sul do Brasil e a uma percepção crítica, desde muito cedo, de muitos desses elementos. Inclui, também, questões de classe social e posicionamento político que marcam, ainda hoje, muitas dessas comunidades e que provocavam sensações contraditórias de pertencimento e exclusão simultaneamente. Inclui, ainda, questões de gênero e sexualidade que só mais tarde passaram a ter um significado e uma importância na minha localização em termos sociais, políticos e religiosos e que marcaram profundamente as formas como eu fui entendendo e vivenciando a minha fé e a compreensão sobre minha vocação como uma decorrência dela.

Me apresento, hoje, diante de vocês com a compreensão de que fé e vocação são experiências profundamente eróticas, que envolvem todo o meu corpo, minha existência e minhas relações com o mundo. A fé, em sua ambiguidade, se corporifica como crença na capacidade de construção coletiva de relações justas, experimentadas já agora em nosso cotidiano em cada pequena e grande vitória, e na esperança ativa de que esta construção é o caminho possível e necessário para a realização de um mundo novo para todas e para tudo. A vocação, decorrente dessa fé, é a convocação e a resposta sempre renovada a estar nesse caminho e de colocar os meus dons e habilidades a serviço desse projeto utópico, mas tangível, reconhecendo e abrindo espaço para que todas as pessoas possam participar e se situar nele, de forma que seja, de fato, uma construção coletiva. Minha fé e minha vocação transbordam qualquer fronteira denominacional ou religiosa, se materializam num compromisso político de caminhar, dialogar e aprender com tudo e com todas, todos e todes que compartilhem do desejo e do trabalho por um mundo de paz com justiça, sem preconceito, discriminação e violência.

Isso é o que eu posso afirmar hoje, consciente de que a vida me interpela cotidianamente e de que essas compreensões e práticas são provisórias e inacabadas, como um caminho em aberto, que eu desejo continuar trilhando como expressão da materialização da minha fé de da minha vocação.

Visão bíblico-teológica

Assim como a minha fé e a minha vocação estão enraizadas nos itinerários que tenho percorrido, com seus contextos particulares, ao mesmo tempo construindo e sendo construídas nos movimentos da vida que me convocam e que eu escolho, também a minha visão bíblica e teológica é resultado do que fui capaz de produzir e dar sentido nesse caminhar até agora. Não tenho dúvidas de que a minha formação comunitária e, posteriormente, a minha formação acadêmica em contextos de tradição luterana marcam profundamente o meu entendimento e o meu fazer em relação à Bíblia e à Teologia. O contato, o diálogo e a imersão com múltiplas formas de Teologias da Libertação (feminista e ecofeminista, negra, LGBTQIAP+ ou queer, indígena, camponesa, da deficiência ou de diferentes habilidades) e sua reivindicação do corpo em suas múltiplas dimensões e relacionalidades (o meu corpo, o corpo das outras pessoas e nossa coletividade como corpo, o corpo do mundo e o corpo de d*s) e em sua materialidade radical como elemento fundante do crer e do agir, ampliaram e complexificaram minhas compreensões e práticas bíblico-teológicas. Isso se deu, e se dá, no meu caminhar com igrejas e grupos religiosos de diferentes origens e tradições, com movimentos sociais e políticos, especialmente feministas e LGBTQIAP+, na reflexão e produção acadêmica na área da Teologia num exercício inter, trans e multidisciplinar que hoje vivencio de maneira renovada na área da Ciência da Religião.

A Bíblia tem um lugar especial na minha experiência de fé em comunidade, particularmente a partir da Leitura Popular da Bíblia e seu diálogo com outras hermenêuticas contextuais. As experiências e os testemunhos de fé narrados e recolhidos nesses textos são, em muitos momentos, ferramenta importante para o discernimento da fé e do compromisso dela decorrente. Ela é um cânon aberto, que só faz sentido no encontro com as realidades cotidianas de quem dela se aproxima, num exercício erótico vivenciado na relação entre o corpus textual em sua historicidade e compreensão profunda e os corpos vivos que desejam, lutam e sonham. A revelação daquilo que chamamos de d*s não se encerra e não está contida definitivamente nela, mas se manifesta nessa fricção de corpos que inclui, também, outros textos, outras narrativas, outros artefatos e outras linguagens que facilitam, aprofundam e expandem nossas experiências religiosas e que impactam na forma como nos colocamos diante dos desafios vivenciados cotidianamente. Sou consciente, também, de como a Bíblia tem sido usada para justificar, incitar e perpetrar preconceito, discriminação e violência e de que, por causa desse uso, ela pode se tornar um obstáculo para a fé e a vivência religiosa, particularmente de pessoas LGBTQIAP+. Entendo que isso me convoca a entender, em cada contexto, a possibilidade ou a impossibilidade de que ela possa ser um elemento de cura e reconciliação e saber relativizá-la em nome da vida e da justiça como direitos fundamentais e inalienáveis de todas as pessoas e de tudo que existe.

A Teologia, como forma de expressão e comunicação mais ou menos organizada das experiências religiosas individuais e comunitárias, também me é importante como exercício pessoal e profissional (acadêmico). Não acredito numa teologia dogmática e doutrinária que parte de temas e verdades pré-definidas que exigem que as experiências religiosas atuais se encaixem em seus conceitos e estruturas mentais já dadas. Acredito numa teologia livre, criativa e imaginativa que, sem ignorar as experiências de quem nos precedeu, os saberes e as tradições acumuladas, no diálogo com as diversas formas de religiosidade popular, é capaz de expressar as múltiplas formas de experimentar d*s e seguir provocando as pessoas a reinventar suas experiências religiosas e as formas de expressá-la. Na minha experiência e compreensão atual acredito que d*s seja uma travesti, que Jesus Cristo encarnou o compromisso com a justiça, que foi um cara legal, mas o que estraga é grande parte do seu fã-clube, e que o Espírito Santo é Sofia, uma mulher negra que não leva desaforo pra casa, que agita e bagunça as coisas onde e quando quer e que, mesmo quando sufocada, violentada e amordaçada é capaz de ressuscitar e reanimar a vida na cumplicidade da comunidade reunida ao redor da mesa. É fome e vontade de comer.

Os temas e as reflexões bíblico-teológicas são lidos, relidos, inventados e imaginados no encontro das diferentes fontes e saberes que nos constituem como humanidade com os desejos e as esperanças que nos alimentam como projeto do que ainda não somos, mas podemos vir a ser: uma rede viva e amorosa de afetos e interdependências que se alimenta e se nutre das experiências de paz e justiça, superando todas as formas de preconceito, discriminação e violência.

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Comunhão, serviço e proclamação

Eu entendo que COMUNHÃO, SERVIÇO e PROCLAMAÇÃO são o centro de nossa experiência religiosa e daquilo que nos constitui enquanto comunidade de fé e de ação. Mas também sou testemunha de como elas têm sido usadas como forma de controle e dominação: “comunhão” entendida como adesão irrestrita a um conjunto de ideias, valores e práticas que não permite diferentes opiniões e postura crítica; “serviço” como forma de criar hierarquias através da divisão social, sexual e racial do trabalho, segundo a qual de alguns e de algumas é exigido uma doação e um servir constantes como forma de expressão de sua fé, enquanto lhes são negados o acesso e o exercício de funções e tarefas de tomada de decisão e protagonismo, enquanto outros se beneficiam do seu serviço; “proclamação” como a imposição de compreensões sobre comunhão e serviço na tentativa de suprimir outras compreensões e práticas através da sua gradual eliminação valendo-se, inclusive, de meios violentos para alcançar esse fim. Mulheres e pessoas LGBTQIAP+ são especialmente conscientes dessas formas abusivas de compreensão e prática da comunhão, do serviço e da proclamação, uma vez que as experimentam cotidianamente, particularmente no contexto de determinados grupos que se denominam cristãos.

Por isso, quando penso em COMUNHÃO, penso no encontro livre e amoroso de realidades com histórias e trajetórias particulares, marcado pelo tempo e pelo espaço e, ao mesmo tempo, ultrapassando os limites de tempo e espaço e estabelecendo conexões entre o que foi, o que é e o que há de ser. Penso num organismo vivo de trocas e intercâmbios marcados pelo reconhecimento, pelo respeito e pela afirmação mútuos, que alimentam, nutrem e fortalecem cada elemento que compõe essa rede e que tornam a dinâmica da vida leve e prazerosa, especialmente quando as estruturas e forças que promovem a morte ameaçam e solapam o viver em plenitude – e quando não conseguimos respirar. É comer, dançar e trabalhar juntas, juntos e juntes com nossas diferenças, celebrando nossa diversidade e construindo uma realidade de paz com justiça em meio ao absurdo da violência e da negação do direito à existência.

Penso no SERVIÇO como a oportunidade de colocar à disposição os dons e as habilidades que desenvolvemos ao longo de nossas trajetórias e de desenvolver outras que enriqueçam o nosso agir comum. Serviço não como uma imposição ou um fardo, mas como um agir livre e possível diante das circunstâncias que encontra reforço e amparo no agir das outras pessoas e nos movimentos voluntários e involuntários da vida. Serviço como um compromisso ético com a construção de um mundo e de uma realidade de paz com justiça, sem preconceito, discriminação e violência. Serviço como resposta a uma força erótica que nos impulsiona à ação pelo prazer de caminhar e trabalhar em conjunto e pelo gozo de chegar um pouco mais perto da realização de nossos sonhos mais loucos. Serviço como manifestação da graça pelo amor que nos une, nos convoca e nos fortalece no caminhar.

Penso na PROCLAMAÇÃO como a comunicação e o compartilhamento das experiências mais profundas que dão sentido a nossa existência e ao nosso viver. Não como uma forma de afirmação de superioridade ou preponderância dessas em relação a outras experiências, mas como a oportunidade de colocar em diálogo todas as experiências, aprender umas das outras e seguir renovando nossas formas de crer e estar no mundo, encontrando novas linguagens e novas formas de dizer de d*s. É um exercício livre e alegre de expressar aquilo que nos toca e nos move na esperança de que, no encontro, nossas experiências individuais e comunitárias ecoem umas nas outras produzindo novos sons, novos movimentos e novas formas sem a necessidade de que tenham que se uniformizar sob o manto de alguma doutrina ou dogma religioso ou teológico, mas que fortaleçam a nossa relação erótica com o mundo e o desejo de relações justas e amorosas entre nós.

Isso é o que eu creio.