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Um deserto chamado pandemia

Um deserto chamado pandemia

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Minha filha mais nova costuma dizer que as festas que ela mais gosta são o Natal e a Páscoa. Nem adianta querermos romantizar isso, pois os motivos são óbvios e eu não tiro nem um pouco a razão dela: presentes e chocolates. Paro para pensar e, de repente, percebo que eu também adoro essas duas celebrações que, além de nos permitirem comer e beber à vontade e de (em tempos “normais”) reunir a família e amigues, nos proporciona alguns momentos de reflexão.

Então, como faço todos os anos, – desde que comecei realmente a me interessar por esse fenômeno chamado “religião” e que, no meu caso pessoal, prefiro chamar de “espiritualidade” -, meio que “sem querer”, meio que “por acaso”, meio que “por coincidência”, me vi fazendo um balanço de como foi este último ano para mim. E com este “para mim”, quero dizer, para o meu mundo interior, para o meu auto-conhecimento, meu amadurecimento. Preciso dizer que essas reflexões foram provocadas não apenas pela Páscoa, mas pelo ano novo astrológico em março, pela lua minguante desta semana e, acima de tudo, por este primeiro aniversário da pandemia do coronavírus. E, é claro, partimos de um princípio que tenho minhas necessidades básicas mais do que supridas, o que não é o caso de muita gente neste momento.

Inspirada na ideia do povo Krenak de que quando aparecer um deserto, devemos atravessá-lo, passei a pensar na pandemia como um grande, árduo e interminável deserto que a humanidade precisa atravessar. (KRENAK, 2020). E, como diria o filósofo Raimon Panikkar (1918-2010), “o estado do ser humano sobre a terra sempre será o de viator, de peregrino e caminhante”, em busca “da Verdade incriada”. (PANIKKAR, 1963) E eu diria: em busca de nós mesmos. Neste deserto, há dor e sofrimento, nele precisamos contar nossos mortos e precisamos identificar as causas, os responsáveis indiretos (?) por estas mortes. (Porque o vírus mata, sim, mas ele pode matar bem menos dependendo de quem é o responsável por governar esse nosso deserto). Para quem está no Brasil, então, e para nós brasileires em toda parte, este deserto parece ainda mais difícil de ser atravessado. No entanto, a gente segue em frente, contando os mortos, os dias, meses, e um ano isolados…, mas, começamos a contar também as curas, as conquistas, as vitórias. A avó que ficou internada 3 meses e se recuperou, a amiga que se contaminou e não sentiu quase nada além de medo, os parentes que se vacinaram (como diz uma amiga: ufa, ufa e ufa!). Também podemos contar as tentações nas quais não nos deixamos cair: o churrasco do fim de semana, o Natal com a família toda, aquela viagem que tivemos que cancelar, o carnaval… (Vixe, foram muitas!).

E aí nós podemos chegar a uma próxima fase da travessia desse deserto, na qual começamos a refletir sobre o nosso amadurecimento, nossa transformação, nossa metanoia (como diria um famoso peregrino). Quantos demônios internos tivemos que enfrentar? Quais sombras precisaram ser iluminadas pela luz do sol inclemente? Quantas vezes vimos uma corda e pensamos ser uma cobra? Quais foram as pedras e, também, os oásis que encontramos no meio do caminho? Quais foram os pesos, os excessos, que precisamos deixar para trás, pois não dávamos mais conta de carregar? Quem caminhou ao nosso lado e nos estendeu a mão quando caímos? De quem sentimos falta e quem não fez falta nenhuma? Quais riscos tivemos que correr para não morrer de sede e de fome da alma? Quantos passos em falso? O quanto caminhamos no nosso eixo e o quanto nos desequilibramos? (Complete a lista com quantas perguntas você quiser).

Depois desse longo mergulho interior – que também pode ser traduzido por: depois que você coloca a sua máscara de oxigênio, como aprendemos no avião, ou a sua máscara cirúrgica (para trazer para o nosso assunto) -, você pode sair do seu umbigo e pensar: quem eu pude ajudar? Quem ainda pode estar precisando de mim? O que eu tenho e posso dar? O que eu não tenho, mas conheço alguém que tenha e que talvez possa dar para aquele outro que precisa? Como posso servir? Quem é o meu próximo?


Referências

 VEJA TAMBÉM
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KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Companhia das Letras, 2020.

PANIKKAR, Raimon. Humanismo y cruz. Madri: Rialp, 1963.