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Nosso Lar É No Arco-íris – A Trajetória das LGBTQIAP+ no Espiritismo

Nosso Lar É No Arco-íris – A Trajetória das LGBTQIAP+ no Espiritismo

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O debate das vivências das LGBT+ espíritas no modo “nós por nós” é recente, apesar de estarmos há tempos nos centros espíritas. Nossa união, nesta última década, é fruto da ações de movimentos sociais e religiosos que reivindicam uma sociedade mais diversa, plural e que garanta os direitos e a dignidade de pessoas de gêneros e sexualidades dissidentes; além de uma maior imersão de ideias retrógradas no movimento espírita brasileiro após a configuração do atual momento político. Por isso, este artigo traz um olhar sobre a construção desse caminho repleto de resistência, coragem e amor.

O Proceder

Para avançar, precisamos antes compreender como o Espiritismo está localizado. Temos como base um tríplice aspecto, formado a partir da interação entre a ciência da observação, a codificação de uma doutrina filosófica e a vivência da moral religiosa cristã. De acordo com o já defasado Censo 2010, mas que pela observação mantém-se como tal, somos o grupo religioso mais antigo, com maior grau de instrução e mais rico, ou seja, um cenário que favorece a manutenção do status quo, mesmo como um dos motes, o “fora da caridade” e o amor ao próximo.

Como já dito, acompanhamos nos últimos anos o alastramento de posicionamentos retrógrados do Movimento Espírita, naturalmente progressista, muito estimulado pela ascensão de uma política que desprivilegia os direitos humanos e nossas existências enquanto pessoas minorizadas.

Não Recomendado

O efeito desse contexto é a reprodução de discriminações e preconceitos sobre nossas identidades e práticas no centro espírita, espaço de fé onde vamos buscar espiritualidade, conforto, acolhimento e vivência comunitária. Por isso, é comum o sentimento de não nos sentir bem-vindes ou recomendades ali.

A LGBTfobia encontrada é múltipla; está no campo  institucional: sendo impedides de atuar nas atividades do passe por questões energéticas, na evangelização infantil ou mocidade por questões energéticas e para evitar qualquer influência  espiritual, ou não sendo autorizades a fazermos palestras públicas ou abordar temas relacionados à sexualidade e ao gênero por se chamar muita atenção, ser polêmico e tabu; no campo “físico” é aquela que nos repele e impede de estarmos nos centros espíritas, seja por falta de abertura e acolhimento, seja por críticas, comentários LGBTfóbicos ou casos mais graves de expulsões e afastamento de pessoas LGBT ou aliadas por se posicionarem contra esse cenário.

Em outro espectro, que expressa diretamente a temática desta edição de Senso (a Cura Gay), temos a LGBTfobia psicológica que sofremos há tempos, com o discurso que diz aceitar nossa identidade homoafetiva, mas sugere a sublimação, desvio da nossa energia sexual em relações para outras atividades em prol do bem comum; ou ainda uma LGBTfobia espiritual, que categoriza nossa experiência LGBT como débito de vidas passadas, como influência momentânea de espíritos mal intencionados e que pode ser curada em tratamentos espirituais para romper essa ligação ou ainda declarações pseudomediúnicas que reforçam o preconceito.

O que a Doutrina diz

Contra todas essas demonstrações LGBTfóbicas registradas no Movimento Espírita, temos a Doutrina Espírita. Allan Kardec e os espíritos envolvidos na escrita das cinco Obras Básicas do Espiritismo, em meados de 1850, não relatam algo contra pessoas que experienciam gêneros e sexualidades dissidentes à norma heterocisnormativa.

Em alguns trechos de O Livros dos Espíritos, temos algumas respostas de perguntas feitas por Kardec sobre tais temáticas, como na questão 202: “Quando errante, que prefere o Espírito: encarnar no corpo de um homem, ou no de uma mulher? Isso pouco lhe importa. O que o guia na escolha são as provas por que haja de passar”. Na mesma obra e em O Evangelho Segundo O Espiritismo, encontramos verdadeiras lições de respeito, amor, igualdade e justiça, seguindo os ensinamentos de Cristo e que empoderam nossas existências.

Outro importante marco no posicionamento do Espiritismo como pró-diversidade é a entrevista de Chico Xavier ao programa Pinga-Fogo, transmitida em 1971 pela extinta TV Tupi, na qual o médium é questionado sobre o “fenômeno do homossexualismo” e responde: “Não devem ser interpretados como fenômenos espantosos, como fenômenos atacáveis pelo ridículo da humanidade. Tanto quanto acontece com a maioria que desfruta de uma sexualidade dita normal, aqueles que são portadores de sentimentos de homossexualidade ou bissexualidade são dignos do nosso maior respeito e acreditamos que o comportamento sexual da humanidade sofrerá, no futuro, revisões muito grandes, porque nós vamos catalogar do ponto de vista da Ciência.”

Indestrutíveis

Essa dualidade entre teoria e prática que temos no Movimento Espírita fez e faz com que um grande número de espíritas LGBTQIAP+ tivessem uma atitude de resistência, permanecessem nos centros buscando sua evolução espiritual, conexão com o Sagrado e atuando nas mais diversas atividades, mesmo que para isso tivessem que omitir quem eram, quem amam ou não pudessem abordar as temáticas que os atravessam.

Revelando uma trajetória marcada por muita dor, incômodo, insatisfação, dúvida e angústia por não se sentirem contemplades e respeitades, que culminou no surgimento de espíritas descentrades, ou seja, deixaram os centros espíritas para seguirem sua fé em seus lares, estudando a doutrina, o que o Espiritismo tem dito sobre diversidade, buscando e formando grupos de espíritas alinhades a essa busca e produzindo conteúdo nas mídias sociais.

Fazem parte desse movimento de resistência: o extinto programa Mutirão – Espiritismo e Direitos Humanos, as páginas Diversidade Espírita e Um Gay Espírita, as coletivas LGBTQIA+ Espíritas e Espíritas Plurais, os podcasts Papo Queer e Um Direito de Ser.

A participação de jovens LGBTIAP+ atuantes nas Mocidades Espíritas também ajudou a traçar essa reconfiguração, uma vez que começaram a abordar a temática nas aulas e eventos e, também, a buscar lugares com maior representatividade.

A Caminhada

Participamos agora do momento em que esse movimento espírita LGBT aos poucos vai entendendo como se posicionar, atuar, acolher e atender à crescente busca por ele. O Espiritismo, finalmente, se junta às nomeações religiosas com grupos formados por pessoas LGBT que buscam a afirmação de suas existências, corpos e vozes; a inclusão nos espaços de fé; e o compartilhamento da vivência espiritual a partir de novas narrativas; e a atualização de conceitos e práticas desatualizadas.

O efeito desse movimento de espiritas LGBT, mesmo que recente, já vem registrando alguns centros espíritas no Brasil e no exterior que podemos considerar como inclusivos e afirmativos, que dão espaço às temáticas relacionadas à diversidade e a espíritas LGBT para transmitirem suas vivências e conhecimentos.

A consolidação dessa nossa atuação parte também por um diálogo interreligioso, no qual será preciso buscarmos ainda mais colegas desses grupos para troca de experiências, caminhos e conhecimento e a Interseccionalidade, para compreender a vivência a partir de diferentes lugares sociais, raça, origens, capacidades físicas, idade.

Podemos considerar como nossos próximos passos: 1. mostrar ao Movimento Espírita o que nós espíritas LGBT temos a contribuir para o estudo e vivência dos ensinamentos da doutrina e de Jesus, assim como nos inspira as teologias cristãs inclusiva e queer, com as quais temos muito a aprender; 2. Estender essa abordagem da vivência LGBT às atividades mediúnicas, uma vez que também temos uma invisibilidade de comunicações de espíritos que fazem parte dessa comunidade; 3. superar qualquer posicionamento que nos exclua ou nos invisibiliza nos centros e eventos espíritas; 4. proporcionar no processo de educação e evolução dos espíritos imortais encarnados o respeito à diversidade sobre gênero e sexualidade, questões que fazem parte do ser; 5. contribuir, como parte do país mais espírita do mundo, para a erradicação do preconceito no Brasil, conhecido também como o país que mais registra o desencarne de pessoas LGBT por crime de ódio, afinal, essa realidade nada favorece a transição da Terra para um estágio mais evoluído.

Como exposto ao longo desse relato, a vivência de espíritas LGBT é repleta de dualidades, conflitos conceituais e práticas, persistência, identificação com o ideal.Há muito o que trilhar, visto que nossa organização coletiva é uma experiência recente, mas com muito amor, empenho e desejos para um novo momento no Movimento Espírita e um novo amanhecer no Espiritismo sob um belo arco-íris.