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A cura pelo diálogo

A cura pelo diálogo

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Foi com imenso prazer que aceitei o convite da Revista Senso para compor esta edição em comemoração ao mês do orgulho LGBTI+. Confesso que a princípio titubeei dada a responsabilidade por falar sobre um tema tão importante. Aceitei o convite não porque me especializei sobre a pseudocontrovérsia 1Disponível em: repositorio.unicamp.br Acesso em 05/06/2021 “Cura Gay”, tema articulador dos diversos trabalhos que compõem esta edição, mas principalmente por minha responsabilidade como antropólogo. Entenda-se aqui responsabilidade nos termos usados por Donna Haraway (2016), ou seja, responsabilidade como habilidade de resposta (response-ability) para o bem viver comum.

Curiosamente, enquanto escrevia este texto uma canção insistia em cantarolar em minha cabeça. Curiosamente porque a canção, se minha interpretação estiver correta, fala sobre a aceitação de nossa própria identidade e sobre importância de nossa habilidade de resposta, especialmente em tempos em que o medo e a angústia tendem a nos paralisar. Eis um trecho da canção Caçador de Mim, interpretada por Milton Nascimento: “Nada a temer senão o correr da luta; nada a fazer senão esquecer o medo; abrir o peito a força, numa procura; fugir às armadilhas da mata escura”.

A crença de que seria possível “curar” ou “reorientar” a sexualidade de pessoas LGBTI+ é precisamente negar o direito à sua própria identidade. É também negar nossa capacidade de resposta para um bem viver comum, nos forçando à paralisia, à angústia e ao medo. É negar, em última instância, nossa capacidade de negociar as diferenças.

Não causa espanto o fato de que, atualmente, a maioria das propostas de “cura gay” sejam orientadas por lideranças vinculadas a alguma denominação religiosa. Tornou-se terreno comum nas Ciências Sociais a noção de que a Religião exerceu e continua a exercer papel fundamental na regulação das sexualidades e no governo das populações. Também se tornou terreno comum, tanto na academia quanto na vida ordinária, a noção de Religião (com R maiúsculo) como ente transcendente e universal. Enxergar as religiões sob a ótica de que, por meio de determinadas características, seria possível determinar o que há de religioso nessas organizações, nos faz perder de vista certas ambiguidades presentes em discursos de lideranças no trato às homossexualidades e identidades de gênero.

A sugestão aqui é ajustar o foco de nossas lentes para o plano das religiões (no plural e com r minúsculo). Nesse sentido, seria mais proveitoso pensar as religiões através daquilo que os atores fazem na prática. Discurso é prática e nomear é produzir materialidades. Afinal, nem todos os atores religiosos comungam da crença de que é possível “curar a homossexualidade”.  Tal mudança de foco pode nos ajudar a compreender diferentes posicionamentos de atores religiosos dentro do cristianismo e para além. E mais; aceitando o pressuposto de que as religiões sempre se fizeram presentes no espaço público brasileiro, o enquadramento sugerido possibilita não apenas compreender tais ambiguidades discursivas e diferenças de posicionamento como também captar o modo como organizações e atores que falam em nome de uma religião atuam em campos de disputa por influência nas arenas científicas, no mercado, na moral e no Estado (Montero, 2015).

Projetos de Lei visando a autorizar as “terapias de reorientação sexual”, conforme proposto por lideranças político-religiosas como João Campos e Marco Feliciano em 2011 – ambos pastores vinculados à igreja neopentecostal Assembleia de Deus – podem ser analisados como disputas de atores por influência na moral e nos costumes via política institucional. Propostas de “terapias de reorientação sexual” não são novas. Trata-se de uma história de longa duração que atravessa as fronteiras fictícias entre religião, política e ciência. Tais propostas, tal como as conhecemos hoje, são reações diretas de atores religiosos frente à decisão da Associação de Psiquiatria Americana em retirar a categoria homossexualidade do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais em 1973.

No Brasil, o processo institucional de despatologização da homossexualidade data de fevereiro de 1985, momento em que o Conselho Federal de Medicina atendeu às reivindicações do Grupo Gay da Bahia, deixando de utilizar o Parágrafo 302.0 do Código Internacional de Doenças (CID) como referência. O Conselho aprovou o parecer PC/CFM/Nº 05/198537, orientando os médicos brasileiros a codificar a homossexualidade como Outras Circunstâncias Psicossociais, categoria que agregava condições não patológicas. Em 17 de maio de 1990, foi a vez da Organização Mundial da Saúde (OMS) excluir a categoria homossexualidade da 10ª Revisão CID, deixando de caracterizar esta orientação sexual como distúrbio ou transtorno.

A despeito da despatologização das homossexualidades datar da década de 1970, algumas organizações e atores ditos religiosos insistem em confrontar decisões dos principais órgãos científicos mundiais. Não custa lembrar que em 1998, oito anos após decisão da OMS, o jornal Folha de São Paulo veiculou uma matéria em que se lia no título: “Encontro em Minas quer ‘curar’ homossexuais”. Sob liderança da psicóloga Rozangela Justino e com apoio do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), o encontro foi promovido pelo Exodus Brasil, uma organização dita cristã interdenominacional que tem como objetivo formar novas lideranças que queiram trabalhar com “aconselhamento pastoral a homossexuais”.

Até então o Conselho Federal de Psicologia não possuía nenhuma regulamentação ou orientação profissional que determinasse como inadequado o julgamento da homossexualidade como doença (Kahhale, 2011). Este evento foi o mote para que o Conselho formulasse a Resolução CFP n° 001/99 de 22 de Março de 1999, estabelecendo que:

Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização dos comportamentos ou práticas homoeróticas nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados; não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamentos ou curas da homossexualidade e; não se pronunciarão nem participarão de pronunciamentos públicos nos meios de comunicação de massa sobre os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica. (Resolução CFP n° 001/99)

Nos 21 anos desde a publicação da Resolução CFP 01/99, foram apresentados por pastores-políticos outros cinco Projetos de Lei visando a sustar os efeitos da Resolução, além de inúmeras audiências públicas para debater uma questão que há muito se pensava encerrada. Em setembro de 2017, as disputas em torno da Resolução 01/99 atingiram seu ápice. Naquele ano, a Justiça Federal do Distrito Federal (JF-DF) acatou o pedido de uma Ação Popular ajuizada por Rozangela Justino e outros 22 psicólogos, ordenando que o CFP não impeça psicólogos de realizarem pesquisas e atendimentos relacionados à reorientação sexual. O CFP recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), que acatou o pedido determinando a baixa e o arquivamento da Ação em de dezembro de 2019 (Gonçalves, 2020).

Apesar da decisão do STF e de sanções aplicadas pelo Conselho Federal de Psicologia, Rozangela Justino e outras psicólogas e psicólogos continuam na cena pública fomentando controvérsias. A organização Exodus segue atuando como importante aglutinador de atores que atuam como articuladores de trabalhos pastorais direcionados àqueles que “desejam voluntariamente abandonar o estilo de vida homossexual”. A importância da organização reside em sua ampla circulação entre diferentes organizações religiosas e no meio virtual. Por meio de livros, revistas, testemunhos, palestras, cursos de treinamento e capacitação para missões de evangelização e aconselhamento cristão, lideranças vinculadas à organização seguem replicando o discurso de que é possível “reorientar a homossexualidade” (Gonçalves, 2020).

Os exemplos apresentados acima podem ser lidos como efeito da disputa de atores religiosos pela regulação da sexualidade em diferentes arenas (religiosa, científica, política). A partir de um conjunto de testemunhos que analisei, percebi o modo como determinadas noções científicas e categorias como abuso, trauma e comportamento adquirido são apropriadas e articuladas a concepções de senso comum que associam homossexualidade e identidade de gênero a distúrbio/doença. Tal apropriação de categorias científicas tem sido fundamental para amparar projetos políticos. Ao produzir um “diagnóstico” da homossexualidade através de uma linguagem pseudocientífica, psicólogos, políticos e pastores reintroduzem a narrativa de patologização de modo a justificar propostas de “cura” ou “reorientação sexual” (Gonçalves, 2020).

É importante notar que esse conjunto de atores não estão simplesmente negando a ciência. Eles disputam a ciência dentro e fora das arenas institucionais ao utilizar linguagens e categorias específicas do campo em disputa. Se olharmos para o caso da ideologia de gênero ou para a defesa da suposta eficácia da reorientação sexual, o que se nega não é necessariamente a ciência, mas determinadas práticas e enunciados científicos dos quais se duvida que sejam suficientemente científicos. Um dos grandes problemas aqui é que tais atores se valem de argumentos de uma ciência neutra, acusando pesquisadores e militantes contrários à “cura gay” de não praticarem ciência e sim ideologia ou obscurantismo. Utilizam, portanto, a própria ideia de neutralidade axiológica para se colocarem em um lugar de legitimidade ao defender uma ciência neutra que deve ser preservada de crenças, opiniões e interesses políticos.

É preciso afirmar que a ciência é sempre política. Tal afirmação aponta para a urgente necessidade de trazer a sociedade para debater determinadas questões junto ao corpo científico. Cientistas têm responsabilidade pelo efeito político dos resultados de suas pesquisas. Isso é cultivar habilidade de resposta, algo que a antropologia aprendeu a duras penas e hoje tem muito a contribuir. Trazer a sociedade para o debate não invalida o status científico das pesquisas, uma vez que estas devem ser amparadas em métodos, técnicas, discussões e avaliação de resultados por pares científicos, mas permite que os interlocutores pesquisados possam ouvir e fazer-se ouvidos.

Interlocutores de pesquisa devem ser escutados em vez de serem pressionados por contingências violentas para que suas demandas sejam atendidas. É exatamente o que ocorreu quando ativistas e organizações sociais “invadiram” reuniões da Associação Americana de Psicologia em 1973 e demandaram uma mudança de posicionamento da Associação em relação às homossexualidades. Caso semelhante ocorreu no Brasil em 1985.

Mas habilidade de resposta vai além das arenas institucionais. Ela possibilita que a negociação da diferença seja feita na vida cotidiana. Habilidade de resposta demanda a produção de alianças e diálogo com parceiros improváveis. Não se trata de mudar o outro ou fazer alianças com aqueles que não estão abertos ao diálogo. Habilidade de resposta nos ajuda a negociar as diferenças entre aqueles que estão à nossa volta no dia a dia.

Por fim, habilidade de resposta exige que deixemos de pensar o mundo pela ótica de indivíduos em luta e competição para dar lugar a uma outra metáfora vinda da biologia. Simbiose diz respeito ao fenômeno em que dois ou mais organismos se associam a longo prazo e cooperam entre si para criar uma vida abundante para todos (Haraway, 2016). Lembrando uma outra canção de Milton Nascimento: “qualquer maneira de amor vale à pena, qualquer maneira de amor vale amar”. O amor, nesse sentido, não é transformar ou se vincular ao outro por aquilo que sou ou acredito, mas cooperar com o outro para que todos possam viver uma vida livre e digna de ser vivida. Sejamos seres simbióticos!


Referências

GONÇALVES, Alexandre Oviedo. Religião, Política e Direitos Sexuais: controvérsias públicas em torno da “cura gay”. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. 2020

HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene.Durham/Londres: Duke University Press, 2016.

KAHHALE, Edna. P. Histórico do Sistema Conselhos de Psicologia e a interface com as questões LGBTs. Psicologia e diversidade sexual. Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região – São Paulo: CRPSP, 2011.

MONTERO, Paula. (org.). Religiões e Controvérsias Públicas. Experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo: Terceiro Nome/Ed. Unicamp, 2015.


Notas