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Espiritualidade e saúde mental: por uma psicologia que acolha a temática de forma técnica, ética e científica

Espiritualidade e saúde mental: por uma psicologia que acolha a temática de forma técnica, ética e científica

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São três horas da madrugada de um sábado frio e eu estou assistindo TV. Passo de canal em canal em busca de algo que possa valer a pena, embora o melhor seria ir dormir logo. Uma coisa me chama atenção, fala a minha língua, me captura:

“João foi curado da depressão com o poder da fé”, brada o orgulhoso líder religioso diante de uma multidão de fiéis animados, e uma multidão maior ainda – que como eu – assistia atenta pela TV.

Sábado, frio, madrugada, cobertor quentinho, talvez um chocolate quente. O programa perfeito para alguém que se sente triste e desesperançoso. Quanta gente deve estar atenta a esse discurso nesse exato momento, pensei. Fiquei preocupado.

O representante de Deus continua:

“Quantos remédios você tomava antes de vir até aqui, mesmo?”

“Seis comprimidos todos os dias”, responde orgulhoso o entrevistado.

“Gastava um bom dinheiro com isso então”, prossegue o entrevistador.

“Ohh, a minha vida era isso. Psiquiatras, psicólogos, remédios, internações. Como eu queria ter encontrado antes o caminho da fé”.

Que absurdo!, pensei imediatamente. Como alguém reproduz uma coisa dessas em rede nacional? Na TV aberta? Como ninguém faz nada? Imagina o tanto de gente em sofrimento que pode comprar essa ideia de abandonar o tratamento completamente, e com isso sofrer ainda mais. Desliguei a TV e fui dormir, embora o sono tenha demorado um bom tempo para chegar.

No outro dia segui pensando no assunto, ainda bem. O pensamento vai se desenvolvendo, e aos poucos a gente vai compondo alguns outros elementos, e finalmente consegue tecer um raciocínio que contemple toda a complexidade da questão. Me lembrei que, infelizmente, a maioria das pessoas não têm condições de acessar serviços de saúde, e as instituições religiosas acabam recebendo essas demandas, mesmo que não estejam totalmente preparadas. Apesar do que assisti no dia anterior, as instituições religiosas estão o tempo todo abertas, dispostas a acolher quem ninguém mais está. E a maior parte delas, ponderei, lida com o tema com a devida responsabilidade.

No outro polo, na ciência, devo encontrar as respostas para essa questão tão complexa, pensei agora. Mais um engano. O interesse entre os pesquisadores pelas relações entre espiritualidade, religiosidade e saúde mental tem aumentado muito nos últimos anos, mas isso ainda não é o suficiente para que as pesquisas sejam sempre sérias e isentas. Espiritualidade e religiosidade são temas sensíveis, que despertam afetos intensos, até mesmo em cientistas, que em tese trabalham a partir da razão. Do lado de cá, nas universidades, também se encontram discursos totalizantes, enviesados, de defesa ou ataque à religião. Também se encontram pesquisas com métodos questionáveis, que buscam validar ou desvalidar determinadas crenças e práticas. O terreno é realmente arenoso e quem fica no meio do fogo cruzado são as pessoas, somos nós.

Na vida real, as coisas acontecem entrelaçadas. A religiosidade e a espiritualidade são compostas de emoções, pensamentos, comportamentos e relacionamentos, o cerne do trabalho da saúde mental. Embora isso possa parecer óbvio, a psicologia segue silenciosa. Passei cinco anos na graduação, e não aprendi sequer o básico sobre o assunto. Recentemente, já no mestrado, descobri que em média 10% dos cursos de graduação brasileiros têm alguma disciplina sobre o tema. Embora isso já seja desanimador, devo ressaltar que esses levantamentos avaliam a quantidade, e não a qualidade das disciplinas. Uma avaliação mais apurada, certamente, revelaria um cenário ainda mais desafiador.

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No trabalho em psicologia, por outro lado, esse tema não pode ser evitado. Pelo menos não por muito tempo. A religiosidade faz parte da vida de mais de 90% das pessoas no Brasil, e obviamente esse vai ser um tema relevante para quem busca ajuda profissional. 

Se a demanda é alta e o preparo é pouco, qual o resultado? Em geral, mais silêncio ou práticas pouco qualificadas. Infelizmente, é comum ouvirmos relatos de pessoas que foram silenciadas por profissionais quanto sentiram a necessidade de falar sobre suas crenças, seja com a clara orientação de que ali não se fala sobre o assunto, ou com desinteresse até que o tema desapareça. Por outro lado, também é comum que profissionais ultrapassem os limites da profissão, exercendo práticas religiosas concomitantes ao trabalho psicológico. São as famosas pseudociências, que é quando se promete resultados a partir de técnicas que não se mostraram eficazes para tanto.

Uma pessoa que procura ajuda profissional tem o direito de tratar de qualquer tema que lhe pareça importante. Mas para isso ela precisa ter certeza que será ouvida com respeito, a ponto de que possa se sentir confortável para falar até mesmo sobre a orientação de abandonar os tratamentos que recebeu de um líder religioso, por exemplo. Do mesmo modo, paciente e profissional podem conversar sobre formas assertivas de contar com o apoio da comunidade religiosa para lidar com o sofrimento, se esse for um caminho que faça sentido para o paciente.

Inúmeras foram as tentativas de descobrir cientificamente se a religiosidade colabora ou atrapalha a saúde mental, e para isso nunca se chegou a uma resposta definitiva. Se sabe que ambos os efeitos são possíveis, e que o que determina o resultado é mais o jeito como a pessoa se relaciona com a religião, do que a presença da crença. Por isso que o tema é relevante em saúde, não para que o profissional determine o quão salutar a religiosidade é, mas para que juntos, profissional e paciente, dialoguem sobre como a religião pode ser mais um dos pontos de apoio com que se pode contar para lidar com as dificuldades que a vida impõe.

Para tanto, é urgente o diálogo. Fiéis e pacientes são a mesma pessoa, e precisam ser encarados dessa forma, como um todo indivisível. Dados os limites de cada conhecimento – científico e religioso – é necessário que as pessoas sejam respeitadas em suas decisões e acolhidas em suas necessidades.  Para isso trabalhamos por uma psicologia – e demais áreas da saúde – que se apropria do tema como uma dimensão válida e importante no trabalho. Uma psicologia que se proponha a acolher as demandas psicológicas decorrentes das mais diferentes formas de religiosidade, e que lide com essa temática de forma séria, técnica, ética e científica.