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Memórias de infância, ou uma tentativa de aquietar o olhar

Memórias de infância, ou uma tentativa de aquietar o olhar

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Poderia começar esse artigo com “era uma vez”, mas não me pareceu muito adequado ao gênero iniciar de forma tão fictícia um estilo que serve para comunicar, informar, ainda mais carregando o recente título de cientista da religião, e cientistas não começam seus textos com “era uma vez”. Penso se não deveria escrever, na verdade, um conto. Mas de contos nada sei para escrever um, tenho dificuldade de inventar história longe e um medo desmedido de gastar nos contos a vontade de dizer verdades guardadas sobre os que estão perto. Tornar pública a vontade de ser estúpida com alguém é uma estupidez ainda maior que o querer, então esse texto não é um conto. Minha coluna esse mês traz justificativas de gênero — e disso entendo, tenho experiência em justificar-me há anos.

Uma outra maneira adequada para começar poderia ser “certo dia, Adélia Prado escreveu [abro um livro de Adélia como se fosse buscar um salmo]”. A sequência viria quase que por intervenção divina, natureza que Adélia pode explicar melhor que eu. Veja só. Certo dia, Adélia Prado escreveu

Antigamente, em maio, eu virava anjo.

A mãe me punha o vestido, as asas,

Me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:

‘canta alto, espevita as palavras bem’.

Eu levantava voo rua acima.

Assim como Adélia, já virei anjo em maio. Lembro exatamente a cor do vestido. Era um lilás em um tom fechado. Um rosa adulto demais para ser rosa, um roxo infantil demais para ser roxo. Lilás é um nome que dão para o intervalo entre o roxo e o rosa, mas se for usado por mulheres mais velhas se diz violeta, que é pra marcar que é um roxo rosado, não um rosa roxeado.

Lembro da época em que me vestiram a roupa de cetim, não sabia a diferença do cetim para os tecidos de qualidade inferior que trazem a lembrança acetinada do pano incomum ao dia a dia. Aquele vestido tinha um brilho que me permitia dizer que vestia, naquela tarde, um vestido lilás de cetim, acompanhado de uma coroa de diamantes e uma vontade de vestir a roupa rosa, de ser só criança. O cetim talvez não fosse cetim, os diamantes também não eram diamantes, eu tinha 4 anos.

Na lembrança, um buraco. Não lembro o que aconteceu antes de me vestirem, não lembro como me explicaram o que faria na igrejinha, toda trajada de lilás acompanhada de mais outras crianças que usavam cetim e coroas. Não me disseram como deveria olhar para a santa que, no altar, usando um cetim azulado cor-de-céu-bom, aguardava sua coroa. Evitei olhar, desviei os pensamentos que se tem quando olha uma santa. Não sabia cantar o canto que as outras crianças cantavam, senti um frio no peito por medo de estar olhando o que não deveria olhar. Será que ensaiaram e eu não soube da preparação? Como todas sabiam cantar o canto? Será que esses cantos a gente sabe de saber, sem ter ninguém precisando dar aula? Se assim fosse, eu tinha defeito de não saber.

Arquivo da autora

Na fotografia guardada daquele momento, estou olhando para o lado. Lembro de me sentir quebrada. Era a menor da fila das meninas. Minha irmã tinha 10 anos, era alta, usava azul e sabia olhar para a santa. Não lembro se cantava, tinha receio de conferir e parecer chacota com o momento, mas minha ambição não era tão grande, queria aprender a olhar primeiro, depois cantaria. Não sabia o que, por que e para que, mas pensava que depois que aprendesse a olhar a santa, de alguma forma, saberia cantar e entenderia o hiato do momento em que saí de casa para vestir o vestido de cetim na praça da igreja.

Erguendo minha mais nova veste para não tropeçar nos panos que excediam meu tamanho, e para não sujar na poeira sépia que só quem nasceu na roça consegue ter gravado na lembrança, fui colocada na fila que se fez na porta da igreja organizada por Dona Sinhá, a beata do lugar que todos canonizaram por conta própria. Apesar de não ter vindo carta de longe para confirmar, a gente crescia sabendo que dona Sinhá tinha alguma coisa de santa. Então, depois do rito que fui parte sem saber olhar, tentei ver a santa mais próxima.

Na barraquinha em que se comemorava tudo que era festa da igreja e que os mais afortunados comiam pernil, e nós, eu e minha irmã, comíamos pasteizinhos que se vendia no diminutivo por serem cortados com a boca de um copo de tamanho singelo, tentei olhar para dona Sinhá, como exercício de auto catequese. Fui vencendo a vergonha de encarar seu rosto, passeando com os olhos pelas vestes violeta e consegui ver. Dona Sinhá tinha rosto de humana. Achei de uma bondade divina.

Certo dia, Adélia Prado escreveu

Quando nasci um anjo esbelto,

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desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Acho que meu problema não era o medo de olhar errado, a verdade é que eu nunca soube ser anjo, não saberia fazer um anúncio.