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Desmontando a culpa atribuída às mulheres nas tradições religiosas (patriarcais/dominação masculina)

Desmontando a culpa atribuída às mulheres nas tradições religiosas (patriarcais/dominação masculina)

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Quando o Budismo se estabeleceu na Índia Antiga (há cerca de 2600 anos), as mulheres, na sociedade da época, só eram reconhecidas de acordo com o valor do homem que as sustentasse.  Poderia ser marido, tio, primo, filho.

Antes das invasões arianas, as mulheres tinham um papel importante nos templos Hinduístas, cuidando dos altares, das ofertas e participando das atividades religiosas.

O cenário onde o Budismo se estabelece está diretamente relacionado a questão das invasões arianas e também ao sistema patriarcal e de dominação masculina, onde as mulheres eram consideradas impuras e deveriam ser tocadas apenas com a mão esquerda, a mesma usada para  a limpeza dos órgãos excretores.

A grande maioria das mulheres não sabia ler ou escrever e muitos dos textos sagrados budistas foram escritos por monges ou leigos praticantes.  Temos apenas um relato de poemas das monjas, chamado de Therigatha.

A ordem feminina, fundada pelo próprio Xaquiamuni Buda, teve origem com sua mãe adotiva, irmã de sua mãe biológica, que morrera uma semana após o parto.  Mahaprajapati se tornara a segunda esposa do rei Sudodhana, pai de Sidharta Gautama.

Quando Sidharta retornou ao reino, agora como Xacamuni Buda, anos após sua partida à procura de como minimizar o sofrimento humano, Mahaprajapati pediu para ser ordenada monja.  Ele recusou.  Como ficariam as famílias se as mulheres abandonassem os lares?

Mahaprajapati não desiste segue Buda com outras 500 mulheres. Numa sociedade patriarcalista, como ficavam as famílias quando os homens morriam ou saiam para se tornar monges?

Certa ocasião, o atendente e primo de Buda, Ananda, resolveu interferir pelas mulheres e fez Buda perceber como ele estava apreso aos valores mundanos da sociedade de sua época.

Xacamuni Buda concordou em ordenar Mahaprajapati, desde que ela aceitasse oito regras especiais.  Entre essas regras estava a de sempre se submeter a um monge, independentemente se este houvesse sido recentemente ordenado.  Ela aceita as regras “como se fosse uma garlanda de flores”.

Assim teve início a ordem feminina no Budismo.  Entretanto, se para os monges havia cerca de 250 regras de conduta e comportamento  para as monjas o número se elevava a mais de 300.  E as razões descritas nos textos (escritos por monges) era de que as mulheres eram mais ciumentas, invejosas, provocadoras da sexualidade e assim por diante.

Ou seja, as mulheres eram culpadas dos desejos sexuais dos monges, bem como das brigas que poderiam ocorrer na comunidade, visto que eram invejosas e ciumentas.  As mulheres aceitaram essas regras – única maneira de pertencer à Ordem. Talvez até se sentissem culpadas de serem mulheres, logo, impossibilitadas de acessar à Iluminação superior. Entretanto, o próprio Buda, no sutra da Flor de Lotus da Lei Maravilhosa, revela uma jovem menina que é uma Buda viva.

Quando lemos os poemas das monjas antigas (Therigatha) verificamos que grande parte das monásticas fizeram a tonsura por terem sofrido enganos e abusos de homens, ou perda de parentes, filhos.  Nesses textos há poucos relatos de casos de vocação religiosa baseada na procura da verdade e do caminho.  Mas os há.

Essa linhagem feminina – grande parte escrita e transmitida pelos monges – tem uma lacuna histórica.  Devido a essa lacuna, de não haver dados confirmados de para quem os votos e os ensinamentos teriam sido transmitidos, no Sul da Ásia a ordem monástica feminina deixou de ser reconhecida pela ordem monástica masculina.

Há uma exceção – de uma ordem monástica chinesa que não teria sido interrompida.

Assim sendo, monjas tibetanas e chinesas – ordenadas de acordo com a tradição chinesa, se consideram como descendentes diretas das primeiras monjas históricas.

Em 1991 estive no Primeiro Congresso Budista De Mulheres, na Tailândia.  As renunciantes tailandesas podiam se vestir de branco e raspar a cabeça, mas não podiam vestir os hábitos ocre dos monges consagrados.  Entretanto havia uma senhora idosa, monja budista, que se auto intitulou monja completa e usava o hábito ocre – o mesmo que transmitia às suas discípulas.

Já na Coreia e no Japão, os monges passaram a transmitir os Preceitos Monásticos também para as monjas, dando continuidade à ordem criada por Buda, na Índia antiga.

Atualmente, no Japão, as monjas tem as mesmas funções dos monges, podendo ordenar homens e mulheres leigos e monásticos.  Isso só ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial, pela falta de monges para suprir as necessidades da população japonesa.  Conheci pessoalmente a Kojima Sensei, a monja que viajou por todo Japão exigindo a equidade entre monjas e monges – o que ela conseguiu e se mantem até hoje.

Ainda há abusos e discriminação contra mulheres nas sociedades atuais. Inevitavelmente também ocorre nos grupos religiosos que, se no passado, foram as pontas de flecha das grandes transformações sociais e inclusão, hoje apenas seguem o status quo.

Assim sendo, há poucas monásticas com curso superior, a maioria se mantem solteiras, embora a maioria dos monges sejam casados e vivam nos templos com suas esposas e filhos/filhas.   Os templos liderados pelas monjas são menores, com pouco poder político. Há cerca de trinta mil monásticos, dos quais 10% são monjas, no Japão atual.

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Há poucos anos, na Europa, pela primeira vez na história do Zen Budismo, uma monja japonesa, casada, foi nomeada Superintendente Geral para a Europa.  Cargo que seria equivalente a de um Arcebispo Católico. Ainda é um caso isolado.

A superiora do Mosteiro Feminino de Nagoya, no Japão, Aoyama Shundo Docho Roshi é a grande mentora e orientadora das monjas da tradição Soto Zen Shu. Com doutorado em estudos Budistas pela Universidade de Komazawa, em Tóquio, é a abadessa do Mosteiro e tem discípulas espalhadas por todo Japão, Europa, América do Norte e América do Sul.  É reverenciada pelos monges dos mais altos escalões da nossa ordem, escritora, palestrante e um exemplo de coerência de prática com sua vida diária.

Ela acolhe a todas pessoas com respeito e dignidade, desmontando qualquer culpa que possa ser atribuída às mulheres dentro da nossa tradição – ou qualquer outra tradição religiosa.

Aoyama Shundo Docho Roshi foi minha orientadora durante os sete anos de prática intensiva no Mosteiro Feminino de Nagoya, bem como de duas discípulas minhas, que também lá se formaram: Monja Isshin Havens Sensei e Monja Zentchu Silva Sensei – ambas professoras atuantes no Brasil.

A Sanga de Buda, ou seja a comunidade de discípulos e discípulas é formada por monges e monjas, leigos e leigas.

Ainda há templos em que nas salas litúrgicas entram primeiro os monges seguidos pelos homens e depois as monjas seguidas pelas mulheres. Devido aos estudos desenvolvidos sobre discriminação de gênero, certa ocasião, o abade de um mosteiro no Sul da Ásia, insistiu: entrariam os monges, depois as monjas e atrás delas os leigos e as leigas. Entretanto, quando os sinos tocaram, a formação antiga se manteve.

Para conseguir transformar padrões de comportamento e para que as mulheres não se sintam culpadas pelos abusos que sofrem, pela intolerância, pelo descaso e desrespeito, ainda há muito a ser feito e conquistado.

Nosso mosteiro feminino em Nagoya tem cem anos.  Os mosteiros masculinos 800 anos.  Durante séculos as monjas se submeteram às ordens masculinas servindo nas cozinhas, lavanderias e ouvindo atrás das portas os ensinamentos sagrados.  Atualmente os mosteiros masculinos se mantem apenas com monges. As monjas praticam nos mosteiros femininos.  Até pouco tempo o mosteiro feminino era orientado por um monge professor.  Há cerca de dez anos, nossa Superiora, Aoyama Shundo Docho Roshi assumiu essa posição, que mantem até hoje, graças ao Mestre Yogo Suigan Roshi, que a considerou apta a ser a Grande Mestra.   Ela é responsável pela formação de monjas e de professoras de monjas e monges, leigos e leigas.

16 de abril do Ano Buda 2585 – Ano Cristão 2019