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A possibilidade da transreligiosidade: salvação para além das religiões

A possibilidade da transreligiosidade: salvação para além das religiões

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Tradução: Sandson Rotterdan e Emanuele Scherer
Revisão: Thiago Teixeira

Frente ao crescimento de diversos movimentos religiosos em âmbito mundial e o processo de fortalecimento de Religiões como o Islã, alguns cristãos se veem na sadia necessidade de “iluminar” os acontecimentos à luz da fé cristã. O meio pelo qual é feita essa iluminação é a doutrina, o catecismo e certas interpretações que são feitas da Bíblia. Com isso, não deixo de valorizar nenhum desses pilares da fé — no meu caso, católica —, mas creio que ainda seguimos presos à mentalidade medievalista que, em vez de buscar o diálogo e os possíveis pontos de aproximação, tenta defender nossas crenças ao melhor estilo das cruzadas. Parece um bom discurso o não atacar, mas tão pouco constrói um olhar a distância – quando não a partir de fora – julgando sem conhecer e terminar afirmando que “a única verdade é a que os cristãos têm”.

Creio que essa defesa se dá em dois níveis que devemos elucidar: por um lado está a defesa a partir do âmbito de uma hierarquia eclesiástica em conjunto com os intelectuais que refletem a vivência da fé cristã a partir dos acontecimentos da história. Por outro lado, está a defesa da fé por parte do povo cristão que se coloca miúdo e obediente à voz que se prova na hierarquia, já que muitas vezes se crê que os fiéis leigos não podem desenvolver uma reflexão pertinente a altura das necessidades.

Simultaneamente surgem duas situações antagônicas: por um lado, há uma insegurança disfarçada com roupagem de pedância intelectual que tenta ser dona da verdade, e por outro lado está a insegurança dos ignorantes, os privados de permissão para pensar a partir de sua experiência, e que, ante ao medo de perder a sua salvação, se fecham ao diferente em obediência, à sã doutrina. Estamos muitos distantes do ensinamento que o Papa Francisco nos dá hoje!

É na história que o ser humano encontra o seu caminho até Deus, mas onde também corre o risco – pelo medo do novo – de se aproximar dos seus próximos e de criar fantasmas. Por exemplo, a mentalidade ocidental, que ainda prima dentro da Igreja Católica — me refiro as questões de estrutura hierárquica —, tenta apreender os elementos da realidade, muito mais que compreende-los e conviver com eles, reduzindo-os ao que pode ser modificado .

Com isso tiramos a possibilidade do Mistério de sê-lo frente a nossa necessidade de possuir a verdade. Mas também se dá certa atitude de indiferença ou demonização da realidade dentro de âmbitos cristãos protestantes, onde se prefere fechar a porta ao novo sem lhe dar a devida importância. A única coisa importante é o que se vive no interior, mas esta se torna uma religiosidade desencarnada. Nessas igrejas evangélicas poucas vezes a palavra de Deus pode iluminar seriamente a vida dos crentes.

Raimon Panikkar – filósofo e teólogo espanhol – questionou fortemente essa atitude de muitos cristãos, sobretudo a sustentada nos âmbitos intelectuais, que disfarçam sua atitude negativa da realidade sobe a fachada da “tolerância”. Afirma: “Se queremos encontrar a base material para a tolerância, temos que superar o plano da mera ortodoxia” .

Não basta saber com exatidão a verdade sobre o que cremos, mas é mais importante a maneira como vivemos as nossas crenças. E são muitos os dogmas e normas religiosas que condicionam o viver das pessoas, pois estão pensados e elaborados em contextos distantes do que vivemos hoje. E as crenças das pessoas vão se conformando em determinadas culturas, favorecidas por elementos (como a geografia e o clima) do lugar onde vivem. Por exemplo, quem nasce na selva amazônica pode desenvolver um grau espiritual muito superior a quem nasce em uma cidade dentro do sistema capitalista. Por isso afirma Panikkar: “Fora das ortodoxias também se pode conseguir a salvação, e talvez seja esse o âmbito normal para maior parte da humanidade” .

Seguindo o teólogo brasileiro Marcelo Barros, apostamos na tomada de consciência cada vez maior de que vivemos um processo de superação das antigas barreiras das religiões. Sobretudo a partir da grande distinção dos temos religião e espiritualidade. A religião é a instituição que nos propõe um caminho de encontro do o mistério, como um feito humano. Mas isso é possível pela espiritualidade como dimensão inerente a essência humana: todo ser humano possui em sua constituição antropológica a capacidade de desenvolver faculdades que permitem conhecer realidades transcendentes. E dando um passo a mais, Barros propõe uma espiritualidade transreligiosa, baseando-se na experiência de cristãos que conseguiram viver a sua fé dentro de outros caminhos e contextos religiosos (Louis Massignon, Bede Griffis, Charles de Foucauld).

Essa transreligiosidade tem duas grandes características que podemos destacar: em primeiro lugar o nível institucional possibilidade um real e eficaz diálogo inter-religioso, favorecido por aquelas experiências de pessoas que, pelo lugar onde vivem e pelo cruzamento de culturas (transculturalidade) vão se formando e vão conformando sua consciência e a sua fé em meio a duas ou mais religiões ou espiritualidades.

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É o caso de quase toda América Latina que viveu desde os seus inícios a invasão de um cristianismo imposto e, ainda hoje, seguimos nascendo entre diversas práticas religiosas próprias de nossas terras. Mas também é o caso da África e da Ásia. Esta é uma constatação a partir da história das religiões que a teologia não pode passar por cima.

Por outro lado, podemos falar de uma possibilidade de viver um cristianismo com maior abertura e um verdadeiro espirito cósmico. Refiro-me a que, dentro do catolicismo, por exemplo, existe um movimento popular integrado por grupos, longe de se prenderem às normativas doutrinais, vivem uma espiritualidade aberta a outras crenças sem por isso renunciar à sua tradição católica.  Refiro-me aos habitantes das zonas rurais, as populações de periferia, onde se dá com maior liberdade o entrecruzamento de experiências espirituais. Hoje encontramos muitos católicos que levam uma vida sacramental que acolheram com alegria a mensagem cristã, que professam publicamente a sua fé em Jesus, que leem e meditam a bíblia, mas também compartilham outras crenças populares.


Referências

1 PANIKKAR, Raymond, “Los dioses y el Señor”, Ed. Columbia, Bs As. 1967, p. 121
2 Ibidem, p. 130
3 Ibidem, p. 135