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Do ser ao inter-ser: princípio pluralista e o giro ontodecolonial

Do ser ao inter-ser: princípio pluralista e o giro ontodecolonial

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A expressão reta não sonha.

Não use o traço acostumado.

A força de um artista vem das suas derrotas.

Só a alma atormentada pode trazer para a voz

um formato de pássaro.

Arte não tem pensa:

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.

Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam.

É preciso desformar o mundo:

Tirar da natureza as naturalidades.

Fazer cavalo verde, por exemplo.

Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.

Agora é só puxar o alarme do silêncio

que eu saio por aí a desformar.

(Manoel de Barros, Poesia completa).

Temos percebido em nossos trabalhos de pesquisa, tanto os de natureza teórica quanto os práticos, que, diante das questões que ebulem da complexidade de nosso arranjo existencial, a narcísica estrutura ontológica advinda do “mito da modernidade” figura de forma preponderante. Mesmo no acompanhamento e participação de movimentos de resistência por direitos socioambientais de comunidades marginalizadas, por exemplo, uma postura crítica a esse mito muitas vezes se dá de maneira insuficiente para garantir a sobrevivência da vida em sua pluralidade e diversidade. Prevalece o estatuto ontológico, essencialmente euroantropocentrado. É o que Simas e Rufino (2010) chamam de atitude de revogar para si uma espécie de “privatização da existência”.

Claudio Ribeiro, na formulação do princípio pluralista, realça, a partir das indicações de Catherine Walsh, que tal perspectiva privatizante do existir se dá a partir de “padrões de poder fundados na exclusão, negação, subordinação” (RIBEIRO, 2020, p. 25) e controle do outro. Trata-se de minar a possibilidade de um caminho de coexistência das diversidades e preconizar a visão de um pensamento único – universalista –, a noção de uma supremacia étnico-racial, o comedimento e normatização dos corpos e das sexualidades, enfim, a colonialidade do poder, ser e saber. Esses centralismos excludentes tornam não só a textura do mundo, como também o ser do humano no mundo, algo uniformizado, determinado, estabilizado, sem possibilidades criativas.

O sistema em que vivemos, elaborado sob os padrões desse estatuto ontológico moderno-colonizador, tido como o protótipo mais evoluído e desenvolvido, é insustentável. É uma bomba-relógio que, se mantida, pode destruir tudo ao redor.

Isso posto, em vista da transformação do paradigma civilizatório vigente, precisamos de um movimento revolucionário que se oriente a partir de uma cosmologia, como nos ensina a sabedoria dos povos originários. Uma visão que entenda a Terra não como uma dispensa, um número ou uma mercadoria, mas, como vida, como “uma totalidade físico-químico-biológica, socioantropológica e espiritual, una e complexa” na qual a “vida Humana, como matéria que se auto-organiza, nasce como história da complexidade dessa vida” (BOFF, 2009, p. 22, 24).

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Esse movimento revolucionário nos exige profunda mudança rumo a um novo estatuto de ser que nos permite dilatar os horizontes dialogais e assim fermentar a pluralidade que gera, promove e sustenta a vida e possibilita a coexistência. Trata-se, sob nossa perspectiva, de um processo de passar da noção de ser para a noção de inter-ser. Ainda nascente, a formulação teórica desse movimento de mudança a que chamamos de giro ontodecolonial encontra no princípio pluralista tanto sua base epistemológica como a possibilidade de contribuir para a concretização do exercício de uma consciência de que não existimos como “ser” isolado mas, existimos em uma dinâmica trama de entrelaçamentos. Ela dissolve radicalmente as definições dos padrões de poder que revogam para si a privatização da existência.

É por intermédio da hermenêutica que o princípio pluralista proporciona que temos condição de pensar a constituição dessa noção de giro ontodecolonial. Embora ainda como uma causa em curso, ela nos provoca a nos abrir à possibilidade de pensamentos aparentemente surpreendentes, que descalcificam nosso “pré-conceito” formado acerca de variadas questões e nos faz “vislumbrar as erupções de vitalidade inesperada que emergem pelas margens da vida. Caminhos inesperados para saber viver entre as ruínas” (TEIXEIRA, 2022, p. 16).


Referências

BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2013.

BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro: Record, 2009.

RIBEIRO, Claudio de Oliveira. Religião, decolonialidade e o princípio pluralista. Numen: Revista de Estudos e Pesquisa da Religião, Juiz de Fora, v. 23, n. 1, p. 21-40, 2020.

SIMAS, Luis Antônio; RUFINO, Luis. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2020.

TEIXEIRA, Faustino. Tramas invisíveis de colaboração na teia vital. Caderno IHU ideias, São Leopoldo, v. 20, n. 345, p. 6-16, 2022.