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Ser LGBT e religioso, é possível no Budismo?

Ser LGBT e religioso, é possível no Budismo?

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Refletindo em como contar sobre minha experiência enquanto um LGBT na religião, me deparei com a ideia de que me entender enquanto homossexual dependeu completamente da religião em que eu estava inserido na primeira fase de minha vida. Esta descoberta, infelizmente esteve ligada principalmente com negações e proibições. Com um sentimento profundo de que tudo estava errado e que eu não me adequava ao mundo. Foram anos de auto repressão e tentativas de correção, com direito à mãe mostrando grifos do livro sagrado, apontando quão errado seria ser “daquele jeito” e que certamente eu poderia ser punido. Então, entender que existia um conceito chamado homossexualidade, foi na época me entender como alguém que desviava de uma sexualidade que estava estruturada dentro de uma norma religiosa.

Eu me vigiava, meus pais me vigiavam, os amigos me vigiavam, a comunidade religiosa que eu tanto gostava e participava, aquele Deus; parecia que respirar era errado naquela época e ser eu não cabia naquele mundo. Seguir em frente, vivendo, por muito tempo significou ter que deixar algo para trás, e assim, não mais ser religioso por anos foi o que me permitiu poder construir minha identidade homossexual. Religião e Homossexualidade: duas coisas que pareciam não combinar, que não poderiam coexistir.

Durante uns bons anos tive que me conformar, seria isso ou implodir dentro da antiga religião, o cristianismo católico. Apenas na universidade entendi que existiam outras pessoas como eu. Amigas lésbicas, as primeiras pessoas abertamente LGBT que tive contato e me apresentaram um novo mundo, cheio de possibilidades. Se entre os muitos papeis da religião estariam o de dar sentido à vida, explicar o mundo e oferecer meios pra sanar o sofrimento, naquela época certamente não foi ali que encontrei acolhimento, mas entre os abraços de importantes amizades, o acolhimento de muitos filmes e a paz que música dos The Smith me trouxe durante toda a juventude, entre lágrimas que ainda vêm hoje ao ouvir “There is a light that never goes out”.

Mas ainda assim, mesmo encontrando um grupo e referências naquele mundo em que eu poderia me ver, poderia me entender, parecia que ainda ser eu não fazia sentido ou precisava de um sentido maior. O fato é que fazia falta poder se sentir parte de uma comunidade religiosa, ter uma religião e me enxergar tal como eu era, em uma religião. Foram várias pelas que passei, procurando acolhimento e reconhecimento, mas em nenhuma delas me senti realmente “em casa”, até que encontrei no Budismos minha pousada.

Dizem sempre meus mestres e mestras que o encontro com o Budismo se dá dentro de uma relação kármica (ações realizadas em vidas passadas), e que por isso esta oportunidade mereceria ser abraçada e aproveitada com carinho, respeito e empenho. Como eu tropecei com o Budismo pode ficar pra uma outra história, mas o importante aqui é o que me fez querer ter esta religião como minha morada.

O ensinamento mais básico do Budismo diz respeito às questões do sofrimento humano. Todo o esforço do Buda estava em encontrar um caminho para resolver o sofrimento das pessoas e ora pois, se não era justamente isso que eu estava procurando? Buda diz em seu primeiro sermão que a vida sempre envolve sofrimento, seja de maneira mais óbvia ou inconsciente, nesta vida o sofrimento é constante. Ele explica as causas do sofrimento e aponta uma solução par ao seu fim. Quem aqui não quer deixar de sofrer? Pra mim, parar de sofrer seria entender que ser eu era certo, que não havia nada de errado, nem com meu jeito, nem com minha sexualidade.

O início da minha jornada no Budismo foi justamente procurar esta via para encerrar o sofrimento, mas claro que para nós brasileiros, que fomos educados num modelo cristão para entender o mundo, ser budista também não é uma tarefa tão simples. O segundo aprendizado que tive no Budismo e que reconfortou meu coração dizia sobre a natureza ilusória da ideia que temos sobre nós mesmos, ou seja, a noção de um “Eu” fixo. Parece complexo, e é, mas há meios de facilitar este conceito que é essencial para nós LGBT+. O Buda diz que nada no universo, seja coisas, pessoas ou quaisquer fenômenos possuem uma existência permanente, separada e uma essência, significado ou identidade independente. Sem nos aprofundar demais para explicar tal conceito, aqui para nós, neste relato, serve dizer que podemos relacionar este ensinamento budista à ideia de que nossa identidade de gênero é algo sócio-culturalmente construído. O gênero é algo vazio de significado aos olhos do Budismo, algo impermanente, em constante mutação, ou seja, não existe um único tipo fixo de gênero ao qual as pessoas deveriam se encaixar, mas as possibilidades seriam infinitas, podendo o gênero ter o significado possível adequado a evitar sofrimento. Imaginem o alívio que é encontrar esta perspectiva! “O Buda está para além do gênero”, disse uma vez uma monja (inclusive, mulher-trans) chamada Shibatani.

As histórias budistas contam sobre um ser chamado Kannon (nome japonês) caracterizado como bodhisattva, ou seja, seres que chegaram muito próximo da iluminação, mas que desistiram de atingir o último estágio da prática, o nirvana, para ensinar e “salvar” outros seres. Kannon é considerado a emanação da compaixão do Buda e os textos contam que ele poderia assumir qualquer forma possível para ensinar o budismo àquele que estivesse sofrendo, podendo surgir como homem ou mulher. Kannon “elu mesmu” teve por muito tempo sua expressão retratada de maneira andrógena e “não-binárie”, a maioria das vezes num corpo feminino, com roupas femininas, porém sem os seios e com bigodes. Esta é uma referência de grande importante no Budismo, gera reconhecimento para diversos praticantes LGBTs+ e que ajuda a acolher principalmente a população Trans, por exemplo.

Mas e a sexualidade, o que diria o Budismo sobre a sexualidade? O que aprendi sobre o Budismo é que esta foi uma tradição por muitos séculos essencialmente monástica e o sexo era fundamentalmente proibido para os monges. O gênero não era importante, o sexo sim. Mas e nós leigos? Existiam cinco preceitos para praticantes leigos, ou seja, nós, meros mortais. Entre os 5 preceitos um deles orientava a termos uma sexualidade adequada a não causar sofrimento. A prática budista é sobre como evitar o nosso sofrimento e também o sofrimento dos outros e, por isso, o certo e o errado em relação ao sexo utiliza estes parâmetros. Se duas pessoas, não importa quais forem as suas expressões de gênero, tiverem uma atitude sexual consensual, ou seja, em que ambas estiveram de acordo, estiverem dispostas e as faça bem, então não há qualquer problema naquele ato. Desta forma, novamente, ser heterossexual, homossexual, bissexual, etc., não é uma questão no budismo a partir do momento em que não há sofrimento. Nesta mesma linha de pensamento, os modelos de relação também podem ser diversos, desde que as regras da relação sejam claras, transparentes e acordadas entre todas as partes envolvidas.

É claro que compreender tudo isso foi muito libertador e acolhedor para mim. Foi quando descobrir que ser LGBT e religioso não eram coisas antagônicas, opostas, mas que poderiam andar junto. O Budismo me deu base não apenas para me aceitar e ficar em paz com minha sexualidade, mas também e deu estrutura para fazer melhores escolhas em minhas relações, a lidar melhor com meu corpo, e principalmente a não me colocar em risco. Evitar sofrimento implica também em ter uma vida sexual saudável. Vejam bem, não há exatamente julgamentos moralistas como os entendemos em nossa sociedade cristianizada, mas para o budismo existe uma relação muito direta entre causa e efeito em nossas ações. Minhas escolhas sexuais quando colocam minha saúde e meu corpo em risco, aos olhos do Budismo são consideradas erradas. E desta forma fazemos escolhas melhores na vida, no trabalho, nas amizades, nos nossos relacionamentos.