Now Reading
Da morte para a vida: a autoaceitação de um bissexual e sua transição de uma igreja evangélica para um terreiro de umbanda

Da morte para a vida: a autoaceitação de um bissexual e sua transição de uma igreja evangélica para um terreiro de umbanda

blank

Meu contato com a religião começou muito cedo, minhas principais lembranças com a religião me remetem aos meus três ou quatro anos de idade. Cresci na igreja evangélica e, no decorrer do tempo, passei por diversas igrejas, desde as mais rígidas até as mais liberais, inclusive as conhecidas igrejas de paredes pretas.

Desde criança tive contato com o ministério de louvor, cantava, ao menos, uma vez por mês junto com os demais músicos da igreja. Ao entrar na adolescência, me tornei líder da mocidade e, posteriormente, líder de célula. Sempre estive à disposição para o que fosse necessário. Foi neste período que comecei a questionar minha sexualidade, pois me sentia atraído por tanto por mulheres quanto por homens.

A partir de então foram inúmeros aconselhamentos e discipulados, bem como inúmeras confissões de pecados relacionados à minha sexualidade. Além disso, participei de retiros como o “Encontro com Deus” e de seminários de libertação e cura interior, cujo foco principal era resolver a minha sexualidade pecaminosa.

Aos dezessete anos, insatisfeito com os posicionamentos da liderança da igreja que eu participava, optei por mudar para uma igreja mais moderna.

Na nova igreja eu tentava passar a pose de hétero o tempo todo e optei por me envolver com os ministérios para tentar me afirmar mais ainda como homem hétero. Foram quatro anos em luta constante para passar uma falsa imagem de homem hétero para meus pastores e meus líderes.

Nesta nova igreja eu tinha muita liberdade com meus pastores e não escondi que me sentia atraído tanto por mulheres quanto por homens, mas sempre deixei claro que eu tinha uma batalha travada contra esse desejo errado.

Nesta última igreja eu passei, novamente, por um seminário de libertação e cura interior, mas desta vez passei por ministração individual, momento que meu problema com a minha sexualidade veio realmente à baila. Eu me envergonhava por não ser 100% hétero e já havia aceitado que a minha sexualidade era o meu espinho na carne e que eu teria que lutar contra esse pecado para o resto da minha existência. A partir de então, meus líderes sempre me lembravam do meu espinho na carne e da necessidade de lutar contra os desejos pecaminosos da carne.

Após quatro anos nesta igreja, os meus pastores foram transferidos para outra cidade, ocasião em que conhecemos os novos pastores. Aparentemente seria um período bom, pois o novo pastor passava uma impressão mais jovem para a igreja e isso me permitiu acreditar que talvez ele me ajudaria com o meu suposto espinho na carne.

Desde os meus dezoito anos eu vinha lutando contra a depressão, e no ano de 2019 (ano em que houve a mudança de pastores) as minhas crises aumentaram consideravelmente e um dos principais motivos era a minha sexualidade, tendo em vista que havia me interessado, novamente, por um homem.

Quando percebi que minhas crises depressivas haviam aumentado, procurei ajuda médica e espiritual, bem como procurei ocupar minha mente com pesquisas acadêmicas voltadas para os direitos das mulheres. Foi neste momento que eu percebi que tratar dos direitos das mulheres fazendo parte daquela igreja seria um problema, pois meu novo pastor e meus líderes não concordavam com a abordagem dos direitos das mulheres, bem como não concordavam com o estudo dos direitos de gênero. Para eles, os frutos produzidos a partir do estudo dos direitos de gênero eram frutos podres.

Em uma tentativa de expor as razões que me fizeram pesquisar os direitos das mulheres ao meu pastor, recebi um ultimato: eu deveria parar de pesquisar gênero (que nessa época já era pesquisa de monografia) ou não teria solução para mim. De prontidão, rejeitei a proposta, tendo em vista que se tratava somente de uma pesquisa acadêmica e que independentemente da minha pesquisa, eu estava em busca de auxílio espiritual. Antes mesmo que eu pudesse falar abertamente ao pastor sobre o meu suposto espinho na carne, recebi a resposta de que aquela igreja não tinha espaço para pessoas como eu.

Naquele momento o meu mundo caiu. Eu havia dedicado toda a minha vida à religião e estava sendo convidado a me retirar da igreja na qual eu me sentia bem.

Acatei a ordem recebida do pastor e me retirei da igreja. Até tentei frequentar outra igreja, mas não conseguia esquecer as palavras que havia ouvido e já não me via como parte do corpo de Cristo.

Deixei de frequentar a igreja em julho de 2019 e, a partir daquele momento, travei uma batalha na minha mente. Comecei a me ver como uma pessoa bissexual, mas também entendia a bissexualidade como um pecado e que eu precisava lutar contra este pecado. Desde que comecei a pensar desta forma, fui ficando mais infeliz e perdendo a vontade de viver.

No mês de agosto de 2019, após lembrar tudo o que o pastor havia me falado no último aconselhamento e perceber que minha vida não fazia sentido sem a religião, tomei a decisão de tirar a minha vida. Saí do trabalho e tentei causar um acidente automobilístico, mas não obtive êxito. Decidi que iria abastecer o carro e sair em rumo ignorado até conseguir pôr fim à minha vida.

A caminho do posto de combustíveis, passei na frente de um terreiro de umbanda e aquilo me chamou a atenção. Dei a volta na quadra mais três vezes até decidir entrar para conhecer, afinal aquele era o meu último dia de vida.

Entrei no terreiro e me ofereceram uma senha para me consultar. Como a consulta era gratuita, aceitei. Me indicaram para conversar com a Cabocla da Lua. Confesso que eu não tinha nenhuma expectativa sobre o que poderia acontecer, só queria ver o que acontecia em um terreiro.

A gira começou, as pessoas começaram a incorporar seus guias e chegou o momento de tomar os passes mediúnicos. Participei do momento dos passes e me senti mais leve, mas não estava entendendo o que estava acontecendo. Após um breve intervalo, começaram a chamar as pessoas que iriam se consultar, até que chegou a minha vez. Eu estava de frente a uma mulher desconhecida que estava, supostamente, incorporada de um espírito, então resolvi expor a minha vida. Cheguei no terreiro com vontade de morrer e após os conselhos recebidos, saí do terreiro com vontade de viver.

Retornei mais vezes naquele terreiro e, em uma das consultas com os espíritos, falei que eu me via como um erro e como uma pessoa afundada no pecado por ser um bissexual, mas que eu não sabia como lidar com essa situação. A partir de então, comecei a receber conselhos que me fizeram entender que eu não era um erro e que ser bissexual não é um pecado. Entendi que amar não é um pecado, mas é uma dádiva divina e que eu precisava me amar da maneira que eu era: sendo bissexual.

Foram longos meses me consultado com dois espíritos, especificamente, até me aceitar como bissexual.

Atualmente, faço parte da corrente mediúnica do terreiro que encontrei no dia em que tentei tirar a minha vida. Amo a vida, amo a espiritualidade e amo ser quem eu sou, um homem bissexual.

Serei eternamente grato à Cabocla da Lua, à Pombo Gira Sete Gargalhadas, à Preta Velha Vovó Chica e ao Terreiro de Umbanda Caboclo Ubirajara por todos os conselhos recebidos e por terem sido o canal que a espiritualidade utilizou para me devolver a vontade de viver e para me fazer entender que eu não sou um erro ou um pecado por ser bissexual.

Hoje sou formado em Direito, pesquisador da área de gênero e políticas públicas, umbandista e apaixonado pela vida!