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A centésima ovelha

A centésima ovelha

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O Novo Testamento traz, em Mateus 18:12-14, a parábola da ovelha perdida, onde uma das cem se perde do rebanho e precisa ser resgatada pelo pastor para perto das demais. Esse texto me traz muita reflexão sobre a necessidade de estarmos juntos, em um mesmo rebanho. O pastor podia continuar seu caminho, contando que a ovelha perdida iria “dar seu jeito” de sobreviver, ou até mesmo encontrar outro rebanho que a acolhesse; entretanto, percebeu a importância de lutar por ela e trazê-la novamente para mais perto.

Em minha trajetória cristã evangélica, aprendi a acatar muitas coisas sem questionar, apesar de sempre me perguntar internamente sobre o fundamento do que eu ouvia. Dentre essas coisas, ouvi, em vários momentos, comentários acerca do amor ao próximo, em que se pregava que devemos amar a todos, sem distinção, mas orar para que eles se libertem dos seus pecados e sejam salvos a fim de irem para o céu. A princípio, não há erro algum nessa afirmativa, uma vez que o amor é ordenamento de Jesus Cristo pra nós, e eu, como cristã, me alinho à trajetória e aos mandamentos do Cristo. O problema reside, portanto, no que é considerado pela religião- o que não necessariamente é prescrito por Jesus e/ou pelo seu legado- como pecado, que leva a uma luta incessante por uma “libertação” e “purificação” que oprimem, em alguns casos, existências, como as LGBTIA+. É nesse contexto que muitas pessoas iniciam uma busca interminável por libertação desse “pecado da homossexualidade”, como se tratasse de um ato infracional para o qual há uma correção possível e acessível.

Eu, assim como toda “boa cristã”, busquei acertar com o paradigma da libertação, onde iniciei jejuns, orações em grupo e até uma jornada de ir a cultos específicos para me libertar daquele “pecado” que precisava sair do meu corpo e dos meus pensamentos. Tal trajetória iniciou-se logo que comecei a perceber sinais da minha bissexualidade, aos 15 anos, em que foi travada uma luta interna de negação e tentativa de rejeitar e afastar de mim os “desejos da carne” e o tal “demônio da homossexualidade”. Desde então, foram- e tem sido- anos de conflitos internos e constante medo sobre o meu comportamento me levar ou não para o inferno, pois, por mais que eu entenda, hoje, que minha orientação sexual não se resume a um comportamento ou algo do qual consiga me afastar ou esquecer, fui sujeita a anos de discursos que me demonizavam e me colocavam como alguém que necessita de ajuda de Deus e dos meus irmãos para “alcançar a santidade” e me ver, enfim, livre desse pecado tão perverso, que jamais poderia coexistir com a minha fé. Tais discursos, baseados em uma série de escritos bíblicos que são aplicados e pregados como verdades incontestáveis sob uma crença infindável- e descontextualizada- da vontade divina, remetem à homossexualidade como castigo (Romanos 1:21-27), desprezível por Deus (Levítico 18:22; 20:13), passível de destruição (história de Sodoma e Gomorra, em Gênesis 19), dentre outras articulações que nos levam a crer que a diversidade sexual é repugnante e deve ser perseguida e combatida a fim de alcançar a santidade.

Após muitas tentativas de me livrar do meu “pecado”, resolvi aceitar que não dava para mudar e que aquilo só estava me gerando sofrimento, pois refletia em ansiedades, medos, insônias, pesadelos, o que pode ser definido na psicologia como “estresse de minoria”1“Pessoas estigmatizadas precisam se adaptar em maior nível às situações cotidianas do que os não estigmatizados pois (…) têm contato com estressores específicos ao grupo minoritário ao qual pertencem” (Pachankis & Safren, 2019 apud PAVELTCHUK, F.O; BORSA, J.C; A teoria do estresse de minoria em lésbicas, gays e bissexuais. Revista SPAGESP. Ribeirão Preto. Vol.21. nº 2. Jul/dez 2020. Esse conceito foi desenvolvido por Meyer, nos EUA, no início de 2000 visando a sistematizar as condições específicas vivenciadas por pessoas lésbicas, gays e bissexuais e explicar como essas condições produzem impactos negativos de saúde mental nesse grupo (Meyer, 2003).. Foi quando direcionei a energia que antes era encaminhada para minha “libertação” para minha aceitação e compreensão do amor de Deus, por meio de pesquisas, leitura da bíblia por um olhar mais crítico e de outros materiais de apoio e do conhecimento de igrejas que são reconhecidamente acolhedoras do público LGBTIA+, que estudam e dedicam seus esforços a reconhecer e testificar o amor plural e graça incondicional de Deus garantindo aos corpos que exerçam suas subjetividades e particularidades, uma vez que o amor ágape nos garante a liberdade e a vida em amor. Comecei, então, a cogitar sair da igreja da qual era membro para imergir numa nova história, na qual eu teria espaço para ser quem sou e me sentiria, enfim, digna do amor de Deus e dos meus irmãos em Cristo. Mas, algumas coisas ainda eram empecilhos, como o fato de a minha família não saber da minha sexualidade e de eu ter enorme apego e amor à igreja da qual fazia parte- e faço até hoje- e às pessoas que ali estavam.

Aí está o paralelo traçado inicialmente neste texto: a centésima ovelha deve ter o direito de estar no meio do rebanho, o pastor precisa agregar e incluir, deixando-a confortável para integrar a diversidade de existências no ambiente de fé. Não tenho nenhuma crítica às igrejas que são, denominadamente, direcionadas ao público LGBTQIA+, inclusive me servem de grande acolhimento e fortalecimento da fé, mas acredito que, num mundo ideal, que fosse regido pelos ideais de Cristo e seu amor incondicional, por um Cristo plural que não oprime, mas ama, esses ambientes destacados não seriam necessários. Eu queria ter a oportunidade de ser quem eu sou junto da minha família e amigos, sem precisar escolher entre a minha fé e minha sexualidade, sem precisar me submeter a um sistema que historicamente aterroriza e traz penitência sobre as expressões de liberdade dos corpos.

Não posso dizer que estou completamente resolvida com a minha fé e que me sinto totalmente liberta das amarras opressoras e estigmatórias que a igreja propõe e opõe sobre a minha e as diversas vivências não heteronormativas. Mas, consigo entender que sou feita à imagem e semelhança de Deus e que não há como conceber a ideia de Deus apenas por um viés cisgênero e heteronormativo, pois isso seria limitar a grandeza e infinitude de Deus. Não é justo comigo mesma exercer juízo sobre meu corpo e meu ser a partir de uma leitura apenas objetiva de um livro- que não deixo de considerar como sagrado- escrito majoritariamente por homens, que têm leituras e perspectivas de mundo a partir de seus corpos, vivências e subjetividades. Foi nesse contexto que encontrei e me encontrei a/na Teologia Queer2A teologia queer é uma abordagem teológica desenvolvida com base em um método filosófico e conceitual da teoria queer, construída por estudiosos como Marcella Althaus-Reid, Lisa Isherwood, Michel Foucault, Gayle Rubin, Eve Kosofsky e Judith Butler., a qual foi responsável por me direcionar a uma reformulação de pensamento que tem mudado minha vida: não é o que a bíblia diz sobre minha sexualidade, mas o que a minha sexualidade diz sobre a Bíblia. Essa frase me marcou e reorientou meu modo de me enxergar enquanto ser sexual e espiritual.

Mediante tudo que me deparei enquanto mulher, bissexual e cristã, sigo com os questionamentos e críticas ao “evangelho” predominante nos discursos eclesiásticos: Se Cristo veio para libertar, por que insistimos em aprisionar e conter a diversidade? Se foi Ele quem criou todas as coisas, por que eu me excluo dessa totalidade e me vejo como pertencente a algo sobre o qual o divino tem repúdio e desprazer? É um ciclo de perguntas e respostas que depende, sobretudo, dos pontos de vista de quem as analisa. Diante disso tudo, a minha resposta é que devemos compreender, amar, respeitar e valorizar vivências e experiências, entendendo que a única verdade absoluta- para nós cristãos- é Jesus, conforme testificado em João 14:6: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. A partir dessa verdade, vivemos e cremos no amor sem precedentes, que parte de um ser dotado de misericórdia e graça sem fim, o qual nos consola e nos protege diariamente da opressão e medo por meio do Espírito Santo e que é responsável pela minha resistência até aqui. Minha trajetória me permite dizer que seria impossível resistir sem o cuidado libertador e acolhedor de Jesus, que me impulsiona a acreditar que sou alvo do amor de um Deus plural, que me criou sem máculas e que quer me preservar em minha integralidade, de cuja minha sexualidade não escapa.

Quanto a mim, volto a dizer que não pude ainda me livrar de todas as correntes e fechaduras que ainda insistem em me aprisionar dentro de um armário. Busco, antes disso, me compreender e me acertar com a minha fé em um processo de auto aceitação e entendimento da aceitação de Deus sobre quem eu sou. Sonho com o dia em que o pastor irá me resgatar para perto das 99 ovelhas, quando não será mais necessário encontrar refúgios nos quais não sou incluída, mas sim destacada dos meus irmãos espirituais. Quero estar junto, integrada e aceita sob um pressuposto de que Deus me ama e que isso não precisa ser reafirmado sob uma lógica de que preciso estar constantemente me arrependendo e me culpando pela minha orientação sexual. Não quero continuar presa em um discurso de “apesar de”, onde sou amada por Deus apesar de ser bissexual. Quero ser entendida como alguém que é amada por Deus porque sou. Porque sou bissexual. Porque sou. Sou amada por Deus justamente porque sou eu mesma em minha completude, onde minha sexualidade não é algo à margem da minha existência, mas é o que compõe, integra e define quem eu sou e é o que me faz única, reflexo de um Deus onipresente e plural, que contempla todas as existências e do qual sou semelhante. É um trabalho árduo e que parece não ter fim, e, por isso, enxergo como o meu propósito, atrás do qual eu sou intimada por Deus a perseverar e buscar, a fim de legitimar e trazer paz a corações- a começar pelo meu- que estão aprisionados e afligidos por uma religiosidade superficial e padronizada em discursos excludentes e opressivos. Talvez essa tarefa dure a minha vida toda, mas que nela eu encontre “a paz que excede todo entendimento”3Essa frase aparece em um texto de Paulo, em Filipenses 4:7: “E a paz que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus” (Versão ALM- Almeida) e através da qual eu torne minha trajetória cada vez mais alinhada com quem Deus é: amoroso, livre e plural. Que eu possa ser constantemente alcançada pelo amor do pastor que me resgata e me traz para perto da comunhão e que me inclui como parte do seu povo. 100 ovelhas só são 100 ovelhas porque eu faço parte do rebanho, com a minha sexualidade, meu corpo, minha subjetividade. 100 ovelhas só são 100 ovelhas porque há uma soma de 100 corpos distintos e únicos, incomparáveis entre si.

C.S, Graduanda em Psicologia, 20 anos


Notas

  • 1
    “Pessoas estigmatizadas precisam se adaptar em maior nível às situações cotidianas do que os não estigmatizados pois (…) têm contato com estressores específicos ao grupo minoritário ao qual pertencem” (Pachankis & Safren, 2019 apud PAVELTCHUK, F.O; BORSA, J.C; A teoria do estresse de minoria em lésbicas, gays e bissexuais. Revista SPAGESP. Ribeirão Preto. Vol.21. nº 2. Jul/dez 2020. Esse conceito foi desenvolvido por Meyer, nos EUA, no início de 2000 visando a sistematizar as condições específicas vivenciadas por pessoas lésbicas, gays e bissexuais e explicar como essas condições produzem impactos negativos de saúde mental nesse grupo (Meyer, 2003).
  • 2
    A teologia queer é uma abordagem teológica desenvolvida com base em um método filosófico e conceitual da teoria queer, construída por estudiosos como Marcella Althaus-Reid, Lisa Isherwood, Michel Foucault, Gayle Rubin, Eve Kosofsky e Judith Butler.
  • 3
    Essa frase aparece em um texto de Paulo, em Filipenses 4:7: “E a paz que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus” (Versão ALM- Almeida)